quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

Título: Os logros da autobiografia


Minha tese, ao invés de introdução, tem um preâmbulo. O que dá no mesmo. é apenas uma questão de nomenclatura e também de filiação. Também não tem conclusão. Tem um etc.. Aqui, além de filiação, é para ser coerente. Muito ainda a dizer no que disse ou consegui dizer. É com ela que passo as noites, ora com espanto, ora com assombro, ora com fadiga. O primeiro parágrafo é este:

“Gostaria de começar com uma vírgula, se fosse possível. Ou com algumas expressões entre aspas, em itálico. Ou com travessões, reticências. E não seria por uma questão de estilo, na tentativa de marcar o pertencimento da minha escrita já em contato com a escrita do outro, mas para marcar a hesitação própria da escrita; que deveria ser a de toda escrita. Se não fosse difícil fazer um estilo, dizer o que é um estilo, começaria com uma vírgula. Assim como, a exemplo de Antonin Artaud, terminarei com um etc.. Seja o etc. de Artaud, seja o de Derrida, ou mesmo o «viver é etc.», de Guimarães Rosa. Se assim começasse, se assim seguisse a trilha, diriam que evidencio um estilo”.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

Exposição A toalha de mesa, de Adriane Hernandez

Adriane Hernandez está expondo em Porto Alegre. Adri é minha amiga desde que me apaixonei por ela assim que a vi. Tirei-a do meu baú de memória. Quando preciso pensar em delicadeza, sentir a delicadeza, imagino o azul da Adriane. Imagino Adri nuazinha em pêlo envolta em um papel quase transparente de tão azul. Será que havia uma instalação com ela assim na abertura da exposição? Adri tem um sorriso tão tímido que fica difícil imaginá-la com seus pêlos apenas sugeridos no meio de uma galeria. Talvez ela tenha se entregue apenas ao olhar amoroso do fotógrafo. O que vejo mesmo é um guarda-chuva sendo banhado por migalhas de chuvas azuis. E me vem de imeditato a chuva torrencial que nos pegou num fim de tarde já distante. A arte da Adri é assim: arte da memória do azul. É o inabitado que nos persegue nos momentos de delicadeza e também nos momentos de fúria; mas uma fúria que imediatamente se arrebenta diante de uma memória ainda mais forte, ainda mais aguda; aquela que esquecemos de trazer até nós quando perdemos o prumo. Adri me emociona em tudo. As migalhas que ela insiste em espalhar pelos lugares mais inesperados são como o prolongamento da sua voz, do seu corpo, do seu cheiro. Adri cheira. Adri sente. Adri é. Sua arte diz tudo isso. E sempre algo mais, tamanha a força de sugerir, de tocar no lugar mais bem escondido como se as coisas ganhassem um corpo. Ainda coisas, mas já outra coisa.



Exposição A toalha de mesa
Onde: Galeria Iberê Camargo do Centro Cultural Usina do Gasômetro, em Porto Alegre, de
11 de janeiro a 03 de fevereiro, de terça a domingo, das 15 às 19 horas.

* Já tinha escrito outro texto sobre a Adriane quando ela me deixou órfã em Paris. Este daí debaixo.

** As fotos são da divulgação.

Álbum de memória - Adriane Hernandez

Segunda-feira, 2 de outubro de 2006

Adriane foi embora num fim de dia chuvoso e triste = azul quase cinza. Eu triste pra cacete. As coisas acontecendo e eu já sentindo a sua falta. A chuva é fria em Paris. Eu, ela e Mari correndo na chuva sentimos isso. Sem abrigo por perto. Subimos na torre Eiffel horas antes de ela partir. Dri tem medo de altura. Suas pinturas são azuis. Seus objetos também. O pão é "amarelo queimado" como todo pão. E branco por dentro. Por duas vezes, vi-os pela tela: ela a me dizer. Prateleiras com mãos humanas entre pães = as mãos da sua mãe. Massa de pão parecendo nuvem carregada de água "mas tem peso". Telas (gigantes, ela me diz) de banheiros meio disformes = o azul se apossando dela como imperativo. E não deve ser difícil uma arte do azul? Picasso, na sua fase azul, é de uma tristeza de escorrer lágrima. O quadro do Soutine que mais me abisma é azul e "amarelo queimado" no centro. Le poulet plumé. O azul da Dri é delicado. Não me parece de dor, a não ser aqui e ali. É uma memória do azul = associações que nos leva a outros objetos, outros tempos. A toalha da mesa que não pode ser separada do pão = a vida nos pequenos gestos [comer pão na mesa preparada para o café da manhã]. Quando vivi isso mesmo? É aí que habita a dor da obra da Dri. Em quem olha. Vestígios do que não se tem ou se viveu ou se perdeu ou se guardou. Indícios, ela me diz. E tem o corpo, isto que sente. Dri embrulhada em papel de pão. O corpo amarelo, como todo corpo, dentro do papel de pão. A sensualidade do pão, o horizonte no pão, o pão onde não se imagina. Este inesperado da delicadeza das pequenas coisas é o que mais me encanta na Dri artista, amiga, pessoa, gente, mulher. Azul e branco sobre azul e branco nas mãos de luva. A mão amarela escondida pela luva azul e branco em cima da toalha de mesa azul e branco. Quadrados. Migalhas. Momentos tomando conta. Me vêm agora estes lampejos, estas frases sem sentido. Sou um azul de saudade num dia branco nesta cidade cinza.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

Historinha de água


Peixe ainda na água. Antes de pular do aquário e morrer no ladrilho amarelo. Acoplei-me como há tempos. À falta de cerveja hermeticamente gelada, iogurte desnatado. Consola a voz de samba e também o velho retrato acima da minha cabeça. Sorrio para mim mesma. Uma mão sorridente agarra meu peito e sussurra loucuras doces. O quadro da loucura seria o da boneca queimada de Farnese ou o rosto disforme de Bacon? Questões sempre amargas. De todo modo, não é qualquer samba. É a voz de Teresa Cristina cantando outro velho sambista tranvestido de galã. Sempre achei que Chico com seu sorriso tímido cabia perfeitamente como herói das noites insones. Pelo menos vivi um dia de vício para agüentar a lentidão dos outros. Nunca a vida passou tão rápida. Sinto pontadas da velhice precoce por toda parte. Bloco de gelo não derrete nunca a não ser quando colocado em ambiente estranho. No café da manhã, nada além de bolinhas marrons sobre o branco gelado como se fosse possível agüentar a própria imagem durante toda uma vida. As toalhas e os lençóis brancos esperam pendurados no varal. Nenhum vento para enxugá-los a tempo. Se ficarem mais um dia é capaz da fuligem os deixarem cinza. O cheiro de flores me faz espirrar. Mesmo assim lamento vê-las partir. Os corpos sentem frio porque os lençóis estão pendurados. As roupas no guarda-roupa estão perfeitamente equilibradas, separadas cor a cor. Quando abandonarei as velhas obrigações, senão quando o abandono não for mais importante? O peixe ainda se debate no ladrilho amarelo.

terça-feira, 15 de janeiro de 2008

Goya e Sombras de Goya

Nestes dias, vi dois filmes sobre Goya. Os dois, belíssimos. Impressionante como dois filmes tão diferentes conseguem dizer tanto de um homem – ou do imaginário que cerca este homem. O primeiro dispensa apresentação: Goya, de Carlos Saura, saído em 2001. Um Goya velho, de 82 anos, confessa para a filha os acontecimentos da sua vida. Conta as perdas e os erros da juventude sem, no entanto, se lamentar de fato. Para mostrar o homem dividido, Saura escolhe uma luz muito próxima da dos quadros de Goya, sobretudo as da sua fase negra. As primeiras cenas são de tirar o fôlego; e o que se segue é uma belíssima mostra de como Saura entremeia imagens e sons para fazer o espectador se sentir na própria obra de Goya. Por vezes o cenário é quase um teatro com sua luz vermelha; um ambiente onírico que nos leva à angustia da rememoração com delicadeza no que ela tem de brutalidade.

O outro, Sombras de Goya (2006), é de outro mestre: Milos Forman. Totalmente diferente do Goya de Saura! Mais focado na história de determinado período da vida de Goya do que na sua vida propriamente dita, o filme mostra os impasses de um homem diante da crueza da história. Parece que se pergunta o tempo todo qual a responsabilidade do homem diante das atrocidades da história. E não há uma resposta certa. Forman entende da ambigüidade e aqui entende ainda mais daquela que parece ter constituído o pintor. É verdade que, se comparado com o Goya de Saura, Sombras perde um pouco do seu brilho, e mesmo assim é um belo filme!

Vi os dois filmes com muita emoção. Vieram-me ainda uma vez todas as sensações de quando percorri as salas dedicadas a Goya no Museu do Prado. Lembro que saí tão mortificada que foi difícil reconhecer outro Goya senão aquele encoberto de negro. Eu conhecia apenas o Goya “oficial”: As duas majas, o 3 de maio em Madri... Foi no Prado que vi o avesso do artista: as suas pinturas negras. De onde veio este avesso? Que homem era este que pintava tanto as brincadeiras dos príncipes como os espasmos da morte, do fantasma, do gigante? É como se ele tivesse sido dois homens; um aberto às benesses da corte e outro atormentado pelos fantasmas da história. Reencontrei este Goya nos dois filmes, apesar das diferenças, e veio daí a emoção.

sábado, 12 de janeiro de 2008

Imagem da Dê e poema do Marcos

Hoje resolvi juntar duas pessoas que adoro. A primeira é a Dê, que é uma das minhas pautas preferidas. Desde que a conheci, ela só me ensina. Ela registrou este pôr-do-sol nas suas férias de fim de ano e enviou para mim. A outra é Marcos Siscar. A meu ver, ele é um dos leitores mais impressionantes que conheço, com um olho capaz de perceber o imperceptível (e sei disso porque sou sua orientanda desde o mestrado). Ele foi o maior presente que o acaso já me deu; aprendo bastante com sua voz pausada e com seus emails capazes de me fazerem ver num piscar de olho as besteiras que por vezes coloco desleixadamente no papel. Só não aprendo mais porque sou péssima aluna. Coloco aqui um dos seus poemas. Sim! Ele é também poeta, e dos bons!

MODO DE USAR


Sinceridade não vai bem na prosa. Só o verso lhe dá abrigo. Do verso se espera o teatro da sinceridade, mostrar-se nu como quem mostra a nudez de um outro. É o véu e o fetiche da sinceridade. A prosa sincera é imediatamente indecente, como o tímido que é pego nu. Não se escreve prosa com o coração, a menos que a inteligência o cubra de protocolos. A prosa quer ser moeda de troca. O verso se torna a prosa da poesia quando se nutre da fidelidade à experiência ou da impessoalidade programada; do salvo conduto da isenção. (Vou lhe contar um segredo. Hoje em dia, é preciso coragem para escrever um verso sincero.) Já a simplicidade vai bem em prosa. Cabe no canal da prosa o fluxo raso da prosa do mundo. A prosa aceita conduzir ao coração solar da realidade, constatar, relacionar, afirmar sentenciosamente. Apenas para o verso a inteligência é indecente. Há prosas frias, ponderadas, alusivas, irônicas, embriagadas. Mas a prosa não aceita engodo ou gramática alternativa. Na prosa, assim como no câmbio, não se mexe. Só o verso consegue às vezes dar um nó na gramática da prosa. Moral da história: não há verso simples, apenas prosa subvertida. (In O roubo do silêncio. Rio de Janeiro: 7letras, 2006).

sexta-feira, 11 de janeiro de 2008

O último metrô

Saí com meu irmão dia destes. Um dia antes de ele ir morar em Campo Grande. Fomos flanar por Sampa. No início da noite, ele foi embora e me vi sozinha na Paulista. Sozinha. Fui-me invadida por uma pequena alegria. Se não fossem tantos arranha-céus, poderia imaginar que estava em Paris como em uma daqueles tantas noites em que vagava sozinha. O que era bom nas minhas longas horas sozinha em Paris é que a alegria que eu sentia não foi percebida depois, como uma espécie de nostalgia. Eu a sentia no momento mesmo em que a vivia. Amava sair da BNF já noite, ver aqueles 4 livros abertos, sentir uma rajada fria de vento no rosto; e daí decidir se ia para o cinema ou para casa. Lá me perdi um pouco. Literalmente, muitas vezes. Descobri o prazer de vagar sem rumo pela ville sem nenhuma obrigação, sem ter para quem voltar. Muitas vezes pegava o último metrô e ficava a imaginar se alguns daqueles rostos iam para casa como eu: sem ninguém para dizer boa noite. Os rostos do último metrô são sempre indescritíveis. Cansaço, fadiga e certo brilho no olhar. Uma morosidade que não chega a ser impaciência. Ninguém parece ter pressa de chegar, como se o descanso começasse ali, no assento dos vagões semi-desertos. Era o atrás do brilho do olho que me fascinava. Silenciosos. Raro ter um barulhinho bom. Aqui sinto falta enormemente disso. Aprendi a alegria da solidão. Depois que voltei já andei algumas vezes por Sampa sozinha. Porém Sampa é barulhenta. O salvo-conduto termina sempre nas salas de cinema; na nostalgia da observação de outros rostos, de outras memórias.

Foi assim neste dia que me vi sozinha na Paulista. Acabei em frente ao Espaço Unibanco. Assisti A culpa é de Fidel, de Julie Gavras; e adorei o filme. Inteligente e engraçado. Eu implico sempre com filme de crianças (exceção para os iranianos); acho que apelam para uma identificação imediata com o espectador. A culpa é de Fidel tem a criança, mas não é gratuito: o filme só funcionaria com uma personagem criança; a história depende totalmente dela. E é muito, muito bom. Depois vi Conversas com meu jardineiro. Talvez porque ainda estava imersa no outro filme, não achei tão bom. Porém o final é terno, emocionante, embora seja possível prevê-lo. Derramei algumas lágrimas. Talvez tenha sido apenas saudade de Paris. Do último metrô. Os dois filmes se passam na França.

Primeiro filme do ano

Pensei em escrever ontem. Ou antes de ontem. Por momentos, vi-me impregnada de poesia, de tanto a dizer. Em outros, achei que não poderia dizer nada além do que já disse de maneira mais inteira. Tateio meio vacilante os primeiros dias do ano. Estive por aqui entre livros. Bêbada, às 5 da manhã, comprei Henry e June, de Anaïs Nin, na banca de revista do Lanche Estadão. Comecei a lê-lo ali mesmo, no balcão do bar, até cochilar. Estava adorando o livro, mas talvez ele tenha descido a cachoeira para onde fomos (eu, amado, Mari, Ana) nos três ultimos dias do ano. Não sei. Perdi. Agora vou ter que comprar outro. Lia Anaïs e me lembrava da Lu o tempo todo. Lu, a da foto aí embaixo. Como já disse em outro lugar, Lu é ao mesmo tempo Ana Cristina César, Silvia Plath, Anaïs Nin... E agora vejo que ela é June também. Uma flor de delicadeza. A viagem foi muito desejada. E vivida com muita alegria. Depois conto mais. Também tiveram muitos filmes nestes dias. Vi vários que mereciam umas boas palavras. Deixo para depois. Ou para as palavras que nunca abandonam o estado de gestação. No tédio do primeiro dia, assisti Amarcord, de Fellini. Achei que merecia ver um grande filme no primeiro dia. Amacord, para quem não sabe, significa eu me lembro. Fellini põe em imagens inesquecíveis o tecido das suas memórias. São como as nossas imagens: esgarçadas, engraçadas, tristes, delirantes. Sem o mesmo talento, pus-me a pensar em cenas equivalentes da minha vida. Fiquei, então, por aqui, grávida de delírios e emoções.

Ano novo: refil?

Comprei agenda nova. Ou melhor; o refil. A capa de couro já me acompanha há 4 anos. Me danei a pensar que ano novo é também assim::: traz a capa do ano anterior. Os sonhos, as promessas, os medos, os desejos vêm todos juntos na virada. Por mim, eu quero fazer mil promessas e desfazer uma a uma em seguida para refazê-las logo depois. De tudo que sei é que 2008 será ano de ganhar maioridade outra vez. Vou sair à revelia do hiato de 4 anos que tem sido o doutorado (fiz questão de ser por inteira aluna, completamente alheia ao tempo do trabalho. Em nenhum momento fui operário-padrão; tão-somente estudante nos meus horários noturnos; como este que agora escrevo). Daí que nesta mudança de agenda tem friozinho na barriga, mas tem uma crença infinda no porvir (não no futuro, que é certo; mas no porvir que é incerto e se faz na tessidura dos dias). Talvez dê certo como tem dado até agora; talvez haja curvas mesmo dando certo. Talvez eu faça uma viagem. Talvez eu fique por aqui mesmo. Talvez eu cresça. Talvez quem sabe seja esta a palavra::: talvez. (Olho minha capa mais uma vez e folheio os dias em branco do refil. Escrevo uma frase que pertence apenas a mim no dia 2 de janeiro, antes mesmo que ele exista. Escrevo com uma confiança duvidosa no porvir. Chegarei até ele?).