sexta-feira, 19 de junho de 2009

Leite derramado, de Chico Buarque



No novo livro de Chico Buarque, cem anos de "tempos mortos". Li Leite Derramado em dias felizes. E os dias felizes trazem o medo da efemeridade, como se o momento seguinte fosse desmanchar o castelo de areia, derramar o leite. E este não é um " livro feliz", o que me faz pensar ainda mais na transitoriedade das coisas. Como saber que a vida não é uma sucessão de enganos, se a percepção sobre nós é sempre meio embotada? Em um hospital imundo, uma TV nunca é desligada. À beira da morte, deitado em um dos leitos, um homem com mais de cem anos não para nunca de falar, como se estivesse amaldiçoado pelas lembranças que não se fecham em um denominador comum. É a narrativa de um homem que passou a vida em engano, lendo os sinais de forma equivocada. Longe de ser um diálogo, é um monólogo; uma cantilena que seria monótona, se no entremeio não houvesse a acidez. É a história de um sobrevivente. Quando quase todos estão mortos, a voz que fala já é quase uma voz além-túmulo.

Chico Buarque está cada vez melhor como escritor. Não que este livro seja melhor que Budapeste, o anterior. São completamente diferentes. E é isso que o faz grande escritor. Com o lançamento, os críticos brasileiros ainda não se cansaram de fazer a relação com Machado de Assis. Para o bem e para o mal, Chico virou o mais novo adepto da escola machadiana... e depois não querem que eu diga que os críticos são quase sempre meros seguidores dos releases das editoras. As referências poderiam ser inúmeras, mas todos preferem falar da parecença com Machado. Porém, a meu ver, neste livro Chico está muito mais próximo da música do que de qualquer influência literária. Como em uma canção de jazz, poucos acordes dão conta de uma vida inteira: uma mulher que ou enlouqueceu ou fugiu com o amante, uma filha que dilapidou seu patrimônio e lhe deu netos e bisnetos, ora desejados ora indesejados. Esses acordes se repetem, mas com variações que causam um torção no andamento do enredo. A cada variação, um novo elemento cria a tensão que permite o próximo capítulo, que não vai ser mais do que variação do anterior e assim... É bonito esse cuidado com a palavra, como se de fato tivéssemos lendo um enorme poema, ouvindo uma longa canção. Não as canções de Chico Buarque, mas uma canção escrita com o mesmo cuidado com que ele deve fazer as suas.
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1 Palavrinhas:

Anônimo disse...

bom comeco