quarta-feira, 23 de junho de 2010

Sobre Saramago e as lembranças


Fico grávida de memórias quando penso em José Saramago. E quis o acaso que, depois de muito tempo sem lê-lo, eu tivesse na cabeceira da cama um livro dele quando soube da sua morte. Quis ficar triste, vazia toda por dentro. Mas logo em seguida pensei que quem soube viver como ele, poderia ir quando fosse a hora, se existe a hora.
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Quando fazia Letras, eu planejei ler toda a sua obra, tamanho o meu espanto diante de O evangelho segundo Jesus Cristo. Este livro ajudou a formatar meu gosto pela leitura. Nunca posso esquecer o que senti quando o li. Trago em mim uma convicção que surgiu daí e não mais me largou: não tenho medo da linguagem da literatura, não importa qual  seja o seu grau de dificuldade.
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Lembro de mim e da Mari, em uma daquelas enormes rodoviárias de São Paulo, exaustas, depois de perambular o dia inteiro. E entre ir ou não assistir a O evangelho segundo Jesus Cristo, que então era encenada, olhei para ela e disse:  "Agora que estamos cansadas, estamos propensas a não ir. O que decidiríamos se não estivéssemos cansadas?". Essa pergunta em tom de desafio foi determinante para que meia hora depois cochilássemos no teatro. Não posso afirmar com certeza se a peça era boa. A lembrança mais nítida que tenho é do frio que sentia nas minhas pernas, que subia para a bunda, que fazia doer minha garganta, que não me deixava dormir quando era o que mais desejava.
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Li Ensaio sobre a cegueira em um dos momentos mais confusos e ao mesmo tempo mais lindos da minha vida. Nunca mais fui tão interessante e tão desesperadoramente contraditória. Ali rompi com tudo que eu era. Caí na noite, bebi muitos porres, menti, fui feliz demais, vivi só. Tudo, muito. Ali fiz e disse as coisas das quais mais me orgulho e das quais mais me arrependo. Hoje já não  sou aquela menina, mas continuo pensando que todo mundo merece viver um tempo em que se acha a pessoa mais poderosa do mundo.  Era tudo tão intenso que eu literalmente senti os cheiros de Ensaio por dias seguidos. Encontrei muitos outros cheiros fértidos - em Lúcio Cardoso, em Artaud, em Bernhard, em Suskind, mas nenhum como aquele. Talvez porque nenhum tempo mais foi como aquele.
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Memorial do convento é a história de amor mais bela que já li. Nenhuma  havia me dito antes que podemos carregar o amor nas vísceras; que depois de andar milhares de léguas, podíamos senti-lo antes mesmo de vê-lo. Blimunda e Baltasar me ensinaram a amar, se o ensino tem a ver com o desejo de. 
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Paro por aqui, quando muitas outras lembranças ainda me agarram. Professora, hoje leio Viagem do elefante. Brado aos ventos surdos que é um pecado sair do curso de Letras sem ter lido um livro inteiro do Saramago. No fundo, procuro em cada aluno o gosto agridoce da aluna que eu fui.  
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Obrigada, Saramago, por estar na minha vida há tanto tempo. Acho que sempre estará. 
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