domingo, 19 de agosto de 2012


a senhora que veio ontem ao meu lado no ônibus tinha problemas nas pernas. foi o seu marido, que muito carinhosamente a colocou no banco, deu uma injeção em sua barriga e se despediu demoradamente, beijando-a e "embrulhando-a" com um cobertor. por causa disso, das suas pernas sem movimento, fiz toda a viagem de porto velho a vilhena sem ir ao banheiro, apesar da grande vontade de ir. não quis incomodá-la. ela só queria dormir, foi o que logo constatei. numa cidade próxima de vilhena, uma filha apareceu procurando-a: "aí está minha mamãezinha". também muito carinho. afastou as suas pernas delicadamente, dobrou o cobertor que a cobria, segurou-a pelos braços e a levou. eu tampouco dormi. também não sei quanto tempo chorei.  pensei nos meus próprios pés há dois anos. e também no carinho de tatupai e manamácia. ainda tenho meus dedos dormentes. manamácia disse que vai ficar assim. acho que me acostumei. dos males o menor. mas e se não tivesse recuperado os movimentos? às vezes penso no quão tão perto cheguei da morte. e ainda me assusto. um tio meu morreu neste ano. e soltei um choro alto e desconsolado. mas depois senti o horror do esquecimento. pareceu-me que todos esqueceram muito rápido, como se houvesse urgência para que a vida continuasse. senti um susto de quem quase desapareceu. é assim? é assim que se esquece uma vida? veja:::: nenhuma cobrança nesse horror. só uma melancolia indistinta. uma certeza de que à vida só interessa a vida. quando desci do ônibus era no que pensava. na vida. em viver. como aquela senhora com seus pés deve também querer viver, de tão envolta em carinho. como eu com meus dedos dormentes e com meus dois homens e mais um tanto de sonhos. existir se destina a existir (parafrasendo valdir).
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sexta-feira, 10 de agosto de 2012

sobre o esquecimento. e sobre nada.


tudo é afeto. inclusive quando ele nos faz falta. ou quando nos roubam. ou sobretudo. porque é quando temos que fazer o retorno. dar a volta. não necessariamente recomeço. mas continuidade. reestabelecer a rede de afetos e lançar um olhar amoroso sobre os acontecimentos. mesmo aqueles que apunhalam. 

tenho feito assim. não me dedicar ao cultivo da mágoa. nem tentar advinhar quanto de veneno se espalhou. alguém que eu amo, no meio de tanto vendaval, retirou a mão de que eu precisava para sair dele? ninguém. para alguns, eu cheguei mesmo a perguntar: "você me vê fazendo algo assim?". e se sofri, é porque a dor é pra quem sente. e se agora me propus a estabelecer algum distanciamento, para quem mesmo o distanciamento? porque eu sempre vou acreditar em gente. sempre. sempre vou querer amar. sempre vou querer bem. sempre vou pensar que há gente muito linda. não importa quanta gente feia há no mundo.

acho que é uma espécie de maldade (e até acho bom porque não gosto de ser boazinha), mas me dá uma certa alegria saber que é o outro que destila sua maldade - contra mim. mesmo que o veneno respingue, aprecio o meu não-movimento, que nem de longe é sinal de covardia. não. eu sou brava. muito brava. e muito petulante. mas ao invés do esforço da briga, eu prefiro o não-movimento. a observação. jujuba me disse uma vez, e eu nunca esqueci::: como é terrível a minha indiferença! todos os seus músculos em carne viva, debatendo-se diante de mim como uma galinha que acabara de perder o pescoço e eu, impassível. e quando fui eu a "perder o pescoço", era um cálculo. joguei todos os pratos no chão para que ele os visse espatifando enquanto lhe lançava palavras de desafio: "é isso que você quer ver, é isso que você quer fazer? pois faça se tem coragem". acho que hoje sou ainda mais comedida. não quebraria meus pratos nem minhas xícaras. sou impulsionada apenas ao movimento de fala ou de escrita (como o de agora) que tem o intuito de produzir esquecimento. nem mesmo compreensão, porque não sou boazinha. mas esquecimento. falo (com aqueles que sabem me recompor). pergunto (àqueles que me conhecem mais do que eu a mim). ouço (os que amo). e de repente parece que tudo ganha sentido. e já estou de novo fora do alcance.

como fico surpresa com quem guarda ódios eternos! uma vez que discuti com uma pessoa de quem eu gostava e que gostava de mim. ficamos muito tempo sem nos falarmos e nos vermos. um dia, andando na rua, a pessoa passa de carro por mim. e eu aceno alegremente. e só em seguida lembro da briga. e acho graça e me encho de alegria porque a outra pessoa também acenou para mim, talvez pega de surpresa pelo meu esquecimento. tenho em mim essa alegria do esquecimento.

de onde será que tirei tudo isso? quem ou o quê não deixa que eu more por muito tempo na minha própria cabeça? arrrisco: foram os livros. e dois ou três amigos. é por isso que quando me alcançam é sempre por muito pouco tempo.
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quinta-feira, 2 de agosto de 2012

para o filho

Poeminha, dois meses que você está na casa da sua avó. a mãe do seu pai. eu gosto desse contato, filho. aprendi o que é amor com a família do meu pai. e não precisou que eles fossem pessoas extrovertidas, alegres, divertidas. pelo contrário. eles eram pessoas silenciosas, discretas, severas, fechadas. mas com um senso de família inigualável. eles eram leais, filho. amavam incondicionalmente a famíla. falo no passado, porque alguns já se foram. mas trago-os em mim. trago, sobretudo, o cuidado. aquele cuidado, filho, que eles tinham com o meu pai e, por sua vez, estendiam a nós, filhos de meu pai. meu pai sempre precisou de mais cuidados. é um passarinho. ainda hoje é. e no meio daquela família silenciosa, espalhava seus gritos de euforia ocasionados pela alegria e pela bebida. e eles, silenciosos, percebiam e compreendiam esse modo de ser. e agora, que escrevo, me pergunto como meu pai consegue viver sem eles::::::

acho bonito tudo isso. e acho bonito você estar na sua avó. mas não vou deixar mais. não por tanto tempo. quando você for, a data de volta já deverá ser marcada. e mais próxima. e porque:::: você nos faz uma falta inominável. eu ando pela casa repetindo as suas palavras, os seus gestos. e falando como se você estivesse aqui, comigo, a me ouvir. já não sei viver sem a identidade de mãe. não me interessam a solidão, o tempo que sobra, a tal libberdade. o que preciso mesmo é da sua presença. 

mas não vou transformar este registro numa lamúria. você foi. e agora já sabemos o que é saudade. o modo como você me interpela no msn e no celular me dizem que a saudade está não apenas em mim. remexendo nos seus arquivos de fotos, encontrei umas bem curiosas. entre estas, as que coloco aqui. explico::: tenho a impressão de que foi a primeira vez que você externou uma fantasia, transvestiu-se de personagem. você mesmo colocou estes óculos bizarros, esta touca, e me impeliu a fotografá-lo. foi bonito, filho. foi bonito. enquanto aguardo que seu pai lhe traga de volta, observo-as e sorrio. e de  novo.certa de que não sei mais viver sem você.