quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

A barba ensopada de Daniel Galera (e mais)


queria ter composto uma lista dos livros lidos na ilha. e depois da ilha. mas os dias foram passando e já não faz mais sentido. a ilha foi na virada do fim do ano. muito calor, rio, pessoas bacanas ao redor, cerveja que ora havia aos montes, ora desaparecia.  daqueles dias que rendem boas histórias para contar aos netos. não posso deixar de dizer que Poeminha se sentiu "o dono da ilha", como se para ir de um lugar a outro não tivesse que passar por pontes suspensas. foi, de fato, uma lindeza.

e eu, com ele tão à vontade, tão amado, tão cuidado pelos outros, li de manhã à alta noite (com lanterna). foi lá que li Barba ensopada de sangue, de Daniel Galera. e muito provavelmente por tê-lo lido, numa noite, desandei a chorar enumerando todas as minhas dores; todas que poderiam não ter existido e todas que teimam em perdurar ad infinitum. uma expurgação.

por que o livro me causou esta reação, não sei. por que gostei tanto do livro, também não sei. são perguntas que me faço desde lá. e quanto mais o tempo, menos sei a resposta. eu já havia lido os outros livros de Galera e me impressionado bastante com Mãos de cavalo, que saiu em 2010. E recentemente, havia lido Até o dia em que o cão morreu, comprovando que o livro é bem melhor do que o filme Cão sem dono, sua adaptação. 

provavelmente não foi o cálculo que me fez gostar. ou o que chamo de cálculo na literatura brasileira recente. porque isso é o que, de fato, mais me incomoda. toda uma leva de autores que escreve muito bem, mas incapaz de produzir uma emoção sequer que não pareça friamente calculada, como se saída daqueles manuais de retórica. e tudo parece milimetricamente calculado em Barba ensopada de sangue, criando passagens belíssimas, e sem me causar o incômodo costumeiro.

também não foi a forma como a passagem do tempo se dá no romance (embora disso tenha gostado). eu sinto falta disso. histórias de um dia só, de um mês só, se mal feitas, são uma chatice de doer. imagino que todo escritor queira ser um james joyce, mas muitos romances por aí são a prova de que nem sempre dá para fazer uma história marcante que se passa em um único dia.

talvez tenha sido o nada-a-acontecer. a astúcia (calculada ou não) de o próprio enredo ser também a forma como o romance é composto, como se a "memória problemática" do protagonista estivesse formalizada no próprio esquecimento da história a ser contada, restando-nos saber o que acontece no entremeio de uma busca: um cotidiano de adaptação a um lugar, novidades, difícil reconhecimento, relações quase nunca solidificadas, afetos que guardam segredos nunca contados; tudo pelo filtro do protagonista (e no entanto a narração é em terceira pessoa, o que também me agradou).

(lembrei agora de uma das cenas "calculadas" - a da visita da mãe. e aquela mãe, na sua maldade inconsciente, na sua futilidade tão à vista, me pareceu uma das mães de Bergman. é a mãe de Sonata de outono, mas com um filho capaz de suportar. não é uma cena tão importante como a primeira - a do encontro com o pai -, mas ajuda a explicar a razão de o protagonista acatar o que é dito nesse encontro, que é o próprio inaceitável). 

o livro é a promessa de uma história que, feita no início, é quase esquecida no seu decorrer e que só se cumpre quando não parece ser mais importante. e não. não se trata de um romance em que nada acontece. mas o que acontece nesse lugar de passagem pouco tem a ver com a busca. dá para sentir o peso do esquecimento. e isso me pareceu muito poderoso. e se essa é a razão de eu ter gostado, é porque penso que a literatura deve se desviar do previsível, ainda quando pareça se aproximar dela. é preciso "girar em torno" do assunto principal. e isso Daniel Galera fez muito bem.

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