sábado, 18 de maio de 2013

café



em 2010, viajei para casa. porque estamos sempre voltando para a casa da infância. queria que meu pai visse meu filho, então com alguns meses. e vi. ele andou com meu filho no colo pelas ruas que já não são as mesmas da infância. e são. porque tudo fica. ele lá no colo do meu pai. nesta volta, dolorosamente, vi a cara da morte. e me deu uma tristeza funda. como eu morreria se meu filho estava ali para ser cuidado? quem cuidaria? a vida passa. e o que me consolava era ter vivido. e vivido bem. a dor é tão silenciosa.

nestes quase três anos depois da quasemorte, não prolonguei minha vida como desejei ali, cara a cara com ela. tropeços. mas sinto que nunca faltou amor ao meu Poeminha. nunca. mesmo quando ele me chama "só um pouco", escancarando a falta, sinto que ele sabe que há em mim um amor imenso. que eu sou feliz, como ele diz. e que ele mesmo é feliz. como aprendeu a verbalizar a diferença? eu não sei. sei que pergunta: "mamãe, você está feliz?". e eu respondo. às vezes sim, às vezes não. às vezes. e ele diz: "eu estou feliz". fiiz.

em 2010, sentia mesmo que voltava para casa. que era uma volta diferente das outras. porque pela primeira vez eu tinha uma família. uma familinha. queria mostrar meu filho àqueles que eu amava. entre eles, Arev, a amiga que me ensinou o que é ser amiga. ela está lá e quase nunca nos falamos. mas meu amor por ela é tão presente que chega a doer. sinto que ela sabe tudo de mim, como Mariamada sabe.

então, eles entenderiam esta noite. mariamada, arev, meu pai. meu pai que agora sofre. que agora perdeu o irmão. o irmão que eu fotografei naquela manhã de 2010. fotografei na área da casa da minha mãe. ele que foi lá ver meu filho, o Poeminha. e agora, foi embora, num repente. naquela manhã, tudo ainda existia. meu pai e minha mãe juntos. minha casa da infância. os móveis já outros que sempre odiei e ao mesmo tempo amei. tudo estava ali. registrei a elegância do meu tio lembrando que na infância ia para a casa dele e roubava as bolachas escondidas no armário. e ali eram todos tão bonitos, tão discretos, que nem demonstravam exasperação por uma ladra mirim de bolachas salgadas. eu, que sentia fome de tudo, principalmente daquela paz que parecia existir ali, naquele ermo longe da cidade.

lembro bem. e se agora doi, sei por que. a família do meu pai tem um olhar profundo. olha-nos como quem sabe. como quem diz. não há véus. ou é amor ou é nada. sabem cultivar o silêncio e exasperam todo e qualquer barulho maledicente. os mais antigos, os que estou vendo partir aos poucos, sabem. por isso, a travessia desta noite triste. eu pergunto sem medo e com a cabeça meio tonteada::: você está aí? você me vê? e me vem uma vontade de reafirmar minhas promessas. e de... tio, lembra daquela casa? lembra do corredor estreito? e dela arrastando seus chinelos? e comendo como um passarinho sentada no fogão de lenha? lembra, tio? era nossa vida. e isso ninguém nos rouba. é nosso. está aqui. ainda que agora tudo nos falte.


foi quase ali, como o que fica nos rastros da memória. as cãimbras nas pernas. o rio. a serra. a serra que não escalei. a água represada. as bolachas. os queijos prensados. o terreiro enorme que dava para o rio. as tias dele que se foram bem antes. a casa grande. sua mulher tão bonita. seus filhos tão louros. a manteiga batida na tigela. a minha meninice quase sempre triste. é nossa história. e se hoje, ele nos falta, se ele se foi, ele, o herdeiro do nome do meu avô, este Inácio como o outro também era, o mundo todo parece acabar junto, mas ficará nos seus, em nós. só posso então atravessar esta noite e desejar que seja assim comigo, que eu vá, sem hora marcada. sem a lenta agonia como a daquela doença de sobrinha que certamente assustou o meu tio naquele agosto de 2010. neste agora, o susto é nosso. e eu me pergunto como não trair aqueles que carregavam a beleza do silêncio. e desejo ser uma herdeira à altura de todos aqueles ensinamentos. de saber manter vivo o que sempre reconheci como o que há de melhor no humano. se foram eles que me ensinaram, herdar. por Poeminha, por eles, por mim, por quem eu amo.
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quarta-feira, 8 de maio de 2013

Kevin, ainda quero falar


O que há, precisamente, num filme como Precisamos falar sobre o Kevin (2011), de Lynne Ramsay, que só agora assisti, é uma contenção a que nos acostumamos a amar no cinema. Uma contenção que, ainda assim, está mais no corpo, nos gestos, da mãe. Talvez porque esteja próximo o dia das mães, talvez porque a relação com a minha nunca tenha sido a que eu desejei, senti-me profundamente tocada por esta mãe - a do filme. 

As resenhas que passei o olho pela Internet insistem que o filme faz uma relação muito direta com a inabilidade da mãe em lidar com a personalidade difícil do filho (e isso é quase um eufemismo). Não acho! Há essa inabilidade, há o filho com a personalidade doentia e, ainda assim, há o não-saber. Ainda que por diversas vezes o tempo vá e volte reconstituindo a vida de Kevin, a cena final ainda é que melhor especifica as razões do filme. Quando se pergunta a razão da barbárie, que é o mesmo que perguntar por que foi daquele jeito, e não de outro, Kevin já não sabe responder. As certezas que conduziram ao horror já não estão ali e resta uma reconciliação impossível. 

No fundo, estão todos mortos - sobretudo os vivos - e, por isso, o vermelho tinge a tela. E aí é preciso pensar no cinema como uma estética, mais do que como uma ética. Há o vermelho, mas também o branco.  Há beleza nessa ausência de rastros que só passa a existir depois do tingimento de vermelho. Ou seja, depois da dor. Até mesmo o quarto dos pais que era o único que trazia algo de próprio, do desejo do sujeito, é respingado pelo "antagonista", daí a assepsia dos outros lugares, desde o quarto de Kevin até a cozinha e a sala da enorme casa, que especificam bem a frieza das relações que não se completam: os pais que se amavam veem o amor interrompido pelo filho; a irmã que ama o irmão, que a odeia; a mãe que não chega a amar o filho que a odeia e a comunidade incapaz de compreender aquela mãe - porque ela própria vítima. E não deixa de incomodar este papel da comunidade - como se o horror estivesse mesmo em ter que viver ali, depois da perda de tudo, daí não poder ser diferente o fim - que parece encaminhar para o vazio, ainda que o branco da luz. O oposto do banho coletivo de sangue do início.

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Fui dormir doída. Sem Poeminha por aqui, que foi para a casa da avó a quilômetros de distância, só me restou uma dor difusa. 
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