segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

Arquivo::: Por que gosto de Jogo de cena, de Eduardo Coutinho


Penso que um modo bonito de se reportar à morte de alguém é poder dizer que ele já existia, em (na) vida,  para você. No meio da tristeza funda, fico feliz de pode dizer que foi com Eduardo Coutinho e o João Moreira Salles que aprendi a gostar de documentário. Deixo, então, aí embaixo, texto que escrevi no meu antigo blog, em dezembro de 2007, quando assisti a Jogo de cena. Desde lá, vi seus outros filmes, como Cabra marcado para morrer, O princípio e o fim, com o mesmo espanto, com a mesma certeza de que era sobre o humano e suas profundezas de que se falava. 

 Por que gosto de Jogo de cena, de Eduardo Coutinho

 
Eduardo Coutinho dispensa apresentações. É o mestre dos documentários. Eu vi poucos. Vi apenas Edifício master e Peões. E vi o Coutinho em um debate, na Unicamp.  Jogo de cena. Que título para o documentarista Coutinho. A partir de um anúncio colocado em um jornal, Coutinho escolhe mulheres para falar de suas vidas ao mesmo tempo em que convida atrizes famosas e não tão famosas para interpretar estas mesmas histórias. O cenário é nu, mas cheio de significados: o palco de um teatro vazio com a câmera praticamente fechada no rosto das depoentes. Parênteses: (sempre certo enfado ao fazer o resumo. Penso que ninguém lê isto aqui e que, por isso, não precisaria fazer o resumo. Por outro lado, sempre uma certa injunção de contextualização me faz pensar no resumo).
As histórias contadas por estas mulheres (não há homens e isso evoca muitos sentidos!) são de cortar o coração de qualquer vivente. Saí com a impressão de que ia morrer. E este transtorno é belamente interpretado e denunciado pelas atrizes. Marilia Pêra, Andréa Beltrão, Fernanda Torres e outra ou outras não reconhecidas por mim estão ali para nos dizer o quanto o real é não interpretável por ser dolorosamente intransponível. Aquelas que contam suas histórias parecem não ter noção da brutalidade do que contam, uma vez que sentiram a brutalidade no corpo. A narração é, talvez para elas, uma dor menor. É a naturalidade que nos desarma. E por outro lado, o jogo de cena (impossível resistir à facilidade de evocar o título) nos faz pensar o que ali é montado, é verdadeiro, é falso; quem conta, quem interpreta?. Daí o efeito de mal-estar vir acompanhado de muita emoção, muita ternura: ora sorrimos, ora choramos, ora gargalhamos.
 
Coutinho realiza um acontecimento a cada vez que deixa o outro falar. E aí reside toda a diferença: ele parece deixar que cada um fale, que cada um mostre o quinhão que lhe pertence. E, dessa vez, o fato de a câmera focalizar o tempo inteiro o rosto das mulheres, abrindo-se apenas quando elas sobem as escadas do teatro, deixa ainda mais forte a sensação de que se trata de fazer um filme sobre o outro, em que o diretor, quando interfere, é para melhor deixar falar.  Embora esteja claro desde o princípio que ele tem controle sobre o dito (até certo ponto), Coutinho parece agarrar como ninguém o dizer do humano; parece acreditar no ser humano; no fato besta de que quem quer que seja tem uma história a ser contada; e uma história que pode fazer torcer as tripas.
 
Não se trata de transparência, nem de verdade, nem de real (está tudo desde o início marcado pela encenação, afinal é no teatro, no próprio templo da representação, que tudo se passa); mas trata-se de algo muito mais forte que transcende a ideia de depoimentos. São confissões. As mulheres parecem esquecer que estão sendo filmadas, que aquilo é um filme, e se confessam para Coutinho, despem suas dores mais comezinhas, mais terrificantes. Para comprovar isto, basta ver como algumas põem em xeque a existência de Deus. Dizem mesmo não acreditar em Deus. Não é todo dia que se têm tantas ateias sob o mesmo foco.
 
Talvez o façam porque Coutinho escolhe mulheres que não têm certezas (não se esconde que houve uma seleção). Todas elas deixam mover os sentidos da  perplexidade ocasionada por algum acontecimento, seja a morte ou o nascimento de um filho; seja o tapa na cara dado em uma filha sem que a mãe tenha noção das consequências; seja o marido que transava com outro homem; seja a jovem que fica grávida depois de uma trepadinha na Sé; seja a mãe do filho morto que o trata como se estivesse vivo. Trata-se de um melodrama? Para mim, mais do que isto, trata-se, sobretudo, do drama da existência. 
 
O documentário é tão rico que me vem a vontade de falar muitas coisas, de revê-lo, certa de que vou encontrar outros sentidos ainda mais fortes. Incrível esta relação humana com Deus... Incrível a jovem que confessa a burrice de ter engravidado jovem... Inominável a mulher que passa anos sem poder sair de casa depois da morte do filho. Tudo tão cru e ao mesmo tempo tão interpretado, interpretável. 
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