sábado, 22 de março de 2014

Nos bares e restaurantes de Buenos Aires











já viajei sozinha algumas vezes. e todas foram viagens inesquecíveis. Madri Roma Natal Bruxelas Toledo Bruges. em Madri, passei dias e noites insones, perambulando pela cidade e me perguntando porque estava ali, em vez de estar em Marselha, essa cidade solar da França, acompanhada, em vez daquela solidão toda. ali já sabia por quê e me embebedava no porão do hostel como só se pode fazer uma vez na vida. só havia uma razão para estar ali. e ela se chamava Jardim das delícias, de Bosch. em Natal, foi a mesma solidão. tudo doía. e eu vi a cidade por um filtro que misturava passado e presente. em Bruxelas, não. estava ali para ver Bob Dylan. e o coração, inteiro, só pensava em como era bonita a aventura da vida. estar ali, realizando o conto previsto pelo meu amigo Macário, era a prova exata de que eu tudo fazia para que a vida fosse memorável. 

e viajei acompanhada muitas vezes. abro a boca para falar em viagem e tanta gente já me diz do desejo de ir comigo. não entendo. ou entendo. de todo modo, sempre fui a que conduziu. em Buenos Aires, não. já expliquei::: cansada, só queria ir. foi assim que descobri a noite nas viagens, que só havia conhecido em Madri, sozinha, na enorme solidão do coração quando sabe que tudo é finito. agora, com o coração inteiro, achei tudo bonito, eu e Tatupai de mãos dadas, mesmo quando o cansaço dominava, e eu, simplesmente, fechava os olhos em algum sofá abandonado. 

eu e Tatupai devemos isso ao Dariano, que selecionou os bares de Buenos Aires. entramos em bar em bar, como em alguma música antiga. às vezes, nem tínhamos o que falar, mas o bar, inteiro, falava por nós. senti, como em outras viagens, que tudo havia me levado a estar ali, naqueles bares e restaurantes. e glutona, devorei tudo com fome. os olhos dos dois, Dariano e Tatupai, brilhavam. e a desatenção atenta de Andressa também estava ali, conosco. assim posso dizer::: vi brilho nos olhos.  e eu? eu falava. não digo mais nada que possa ser lido em público. guardo comigo - e com eles - as conversas loucas. 
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sem a conversa, o que seriam das viagens? ainda seriam viagens, mas só existiriam pela enorme solidão que delas emanam. então, reverências e muitas gracias aos meus companheiros desta viagem.
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quinta-feira, 20 de março de 2014

Liliana Porter - El hombre com el hacha y otras situaciones breves











Aqui tudo parece
que era ainda construção 
e já é ruína
(Caetano Veloso)

o que mais impressiona no trabalho de Liliana Porter, artista plástica argentina, que está com a exposição "El hombre com el hacha y otras situaciones breves", no Malba, não é exatamente a dimensão diminuta de suas personagens, mas o que elas, na sua pequenez, provocam. o sujeito é o que desencadeia as ações. e embora exista um ou outro gesto de construção, na maior parte das vezes, o que se produz são destroços. os rastros do homem, assim, de modo geral, são relacionados ao seu enorme poder de destruição. é lúdico apenas para o olhar desatento. o caminho que o humano percorre, e o que ele provoca, é quase sempre devastador. o tamanho e a quantidade das ruínas parecem estar sempre em desalinho com a dimensão do homem. seria fácil criar uma visão redentora do ser humano, como a que às vezes criamos do homem perante a natureza, mas o enorme lastro vermelho que a mulher espalha, numa das cenas mais significativas da exposição, deixa claro que não se trata de redenção, embora a simbologia da mulher e o vermelho permaneça intacta. são cenas de trabalho. e isso é impressionante (desculpem-me usar a palavra mais uma vez, mas foi exatamente assim que eu e Tatupai ficamos: impressionados. vagamente, eu lembrava do nome dessa artista, mas nunca tinha visto uma exposição. daí termos ficado encantados de verdade). não é, portanto, apenas a metonímia das mãos. todo o corpo trabalha nas cenas de Liliana Porter. obras deveriam, portanto, ser construídas. mas a construção são ruínas. cacos de objetos, fios pretos e marrons desalinhados, objetos tombados, a  foice e o martelo, os soldados em sentinela; tudo contribui para a sensação de que o trabalho do homem, mais do que deixar obras inacabadas, produz, de fato, o aniquilamento. a demolição, a ruína, não é posterior; está já na origem do gesto. desalinha-se, assim, um dos maiores mitos modernos: a força de trabalho que constitui a dignidade do homem. que dignidade? que homem?... para as perguntas essenciais, é um pulo: quem somos? o que fazemos? o que queremos?  
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(para as fotos terem ficado boas, precisaríamos de um tripé, para dizer o mínimo. mas eu e Tatupai fizemos várias tentativas. e resigno-me em dizer que as deles ficaram sempre melhores que as minhas)

 

quarta-feira, 12 de março de 2014

abaporu




tenho um sentimento muito indefinível de pertencimento::: não sou daquelas que apregoa que o brasileiro é o melhor povo do mundo, porque quando ouço isso tenho sempre a impressão de que esse pensamento expressa uma mal disfarçada intolerância com a diferença. mas sou daquelas que o coração dispara quando vejo um "pedaço" do Brasil em algum lugar. 

daí que o coração deu um salto quando vi Abaporu no MALBA - Museu de Arte Latinoamericana de Buenos Aires. sim, existe uma emoção ao ver pela primeira vez o que já foi mil vezes visto. o outro nome da aura. ver ali, no museu, em seu tamanho real, o que tantas vezes vi nos livros. toda uma história da arte brasileira, mas também da literatura, percorre esse quadro. e é por isso que parece que sabemos tanto sobre o quadro de Tarsila. do mesmo modo que achamos que sabemos muito de Mário de Andrade e de Oswald de Andrade. quanto a mim, aprecio, desde muito, o ar de rebeldia que parece ter havido ali, naquele exato momento em que o "grupo modernista" reconheceu nosso provincianismo e tentou estancá-lo. deve ter muito de romantismo nesta ideia, mas é talvez devido a esse romantismo que deslumbra apreciar Abaporu.

fiquei, então, com este saber esparso que é uma parte da minha história de leitora, de professora de literatura. a lágrima no olho veio fácil. e é isso que a "primeira vez" das "tantas vezes" deve significar. ela dá sentido a um pertencimento feliz. uma pertença que sabe que o que nos pertence é, de fato, do outro. deve ser o mesmo que sente os mexicanos ao ver um autorretrato de Frida Kahlo, que está logo ali, perto de Abaporu.
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os dias na cidade




dessa vez, me deu preguiça de pesquisar sobre a cidade. achei que o olhar do outro era suficiente. eu vinha de uma rotina de tanto trabalho e tanto enfrentamento. não quis saber de nada a não ser estar em outro lugar. e que lugar, não? é imaginário, como tudo. para mim, Borges está em cada esquina. foi aqui que ele viveu, que um dia enxergou e que depois se descobriu cego. é tudo tão gigantesco que tenho medo de pensar. então, caminho sobre os passos dos outros. fico bêbada da cidade. e depois, sóbria. o que nos faz estar viva? a literatura tem alguma importância? faz importância eu pensar em Borges, Cortázar e Casares enquanto caminho pela cidade? é o que pensei em algum momento, enquanto passávamos de um restaurante a outro, de um bar a outro. a segurança, ou ingênua ou real, é palpável em Buenos Aires. nada nos faz ter medo. os noticiários nos falam da crise, mas, para nosso olho do viajante, a crise só existe nas formas escritas dos protestos que tomam conta das ruas. Buenos Aires, assim, parece uma cidade inofensiva. os táxis são baratos, os restaurantes servem porções generosas de comidas deliciosas, o vinho é bom e barato, a cerveja é de um litro, as ruas são largas e antigas. dá vontade de caminhar com passo lento. mas o turista é ansioso por excelência. vamos de um lugar a outro, ávidos por mais um lugar. e assim passam os dias.


sábado, 8 de março de 2014

bom dia, argentina



não apenas a paisagem muda. ou melhor, a paisagem humana é a primeira a ficar diferente. são homens e mulheres e crianças que têm uma memória do corpo, que não é a nossa. eu gosto de ver, porque se percebo o outro diferente de mim, percebo também a minha diferença. tenho outra memória de corpo, tenho outro corpo. sinto, então, o deslocamento deste modo::: é a língua, é o corpo, é a história. nada me pertence a não ser o que está em mim. e é por esse filtro que vejo. sim, vejo. como é bonito ver outro lugar. e ver desse modo. de mãos dadas. é incrível como depois de tantos anos é a primeira vez que eu e Tatupai conseguimos sair apenas nós dois. ou quase. viemos com Dariano e Andressa, que são namorados. ser namorado é ainda saber beijar na boca, pegar na mão, fazer carinho no cabelo, encostar no ombro. e neste momento é o que eu quero. beijar na boca, pegar na mão, fazer carinho nos cabelos do Tatupai, encostar no ombro. e claro, dar risada, enquanto vivo outra cidade.
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