quinta-feira, 3 de abril de 2014

conversinha espaçada antes do sono






Viver perto das pessoas é sempre dificultoso, na face dos olhos.

Tudo que é bonito é absurdo. 

Riobaldo, como em todo o resto de Grande sertão: veredas.

nestes dias, experimento muitos sentimentos. resolvi largar a coca-cola, porque me veio a consciência - tardia, diga-se de passagem - de que era um vício. ---  e essa constatação vinha cada vez mais com a sensação de idiotia. passei incólume por todas as drogas, e com certo ar de presunção, não por alguma espécie de moralismo; unicamente por um vago receio de não dar conta de me manter atenta para o que gosto de fazer: cuidar do que me faz bem, que é, de mais a mais, uma profusão de coisas difíceis de enumerar. então, como me viciar em algo que, em tese, não traz "barato" algum? resolvi largar. mas largar a coca-cola é como largar o que lhe acompanhava: uma produção intensa de trabalho no computador. agora, derivo em volta dos meus três mil livros sem saber exatamente o que fazer com esta nova Milena que dá seus primeiros passos::: uma Milena que largou a coca-cola há 40 dias e está na segunda semana de caminhada às 7h --- da manhã.

penso penso penso. e mergulhada na vida, no cotidiano, extraio dela algumas certezas já mil vezes ditas::: quero muito que o percurso do Poeminha seja bonito. desta boniteza absurda de Guimarães Rosa. e como, neste mundo tão bizarro? penso. e começo a lhe explicar. falei para ele::: e tenho a sorte de ter um filho que ouve. e questiona. e rumina. e depois tira as dúvidas. concentrado e atento. então, eu lhe disse que poderia existir no mundo pessoas que não iam gostar dele. e que era preciso saber conviver com isso. e, ainda assim, não experimentar sentimentos extremos: manter um certo alheamento ao não-gostar (bem mais importante manter a atenção no "gostar"). ele me disse: "como não gostar?" e eu expliquei. disse que não era preciso que todos gostassem, que todos concordassem com o que ele dizia.

falei de afeto, de amor. e disse que tudo era construção. disse que o fato de dizer que ele era a pessoa mais linda, mais importante, tinha a ver com isto::: com afeto, com amor. outros não achariam o mesmo. e que era assim na vida. e, por isso, seria preciso construir um estofo. "estofo?". sim. saber suportar o não gostar do outro. e o jeito era construir relações de afeto. e cuidar dessas relações::: "sim, como eu cuido de você".

depois de ruminar, ele me pergunta: "até Bibi pode não gostar de mim?". Bibi é a bisavó, que tem verdadeiro amor por ele. um amor irremovível. expliquei:::: "não. não". Bibi gostaria sempre dele. então, falei, sobretudo, que era preciso, por princípio, gostar de gente, acreditar nas gentes. nos momentos de impasse, aqueles nos quais não se sabe exatamente o que fazer, isso lhe ajudaria a suportar. "suportar?". sim. falei, então, do exercício longo e demorado de suportar.

disse, ainda, com as mesmas palavras - ou outras: "filho, imagina que eu, que não hesitaria um minuto em dar a vida por você, tem horas que fico irritada, imagine outras pessoas que não te amam do mesmo modo?" falei, então, das qualidades que podem ser grandes defeitos. nunca sabemos o que temos de mais bonito. e expliquei::: por muito tempo achei que minha maior qualidade era não ter alteração de humor. acordar já sorrindo. como agora, que, quando acordamos e nossos olhares se encontram, o sorriso largo vem de imediato. uma qualidade - é o que eu achava, até um antigo namorado dizer - com imensa raiva - que não havia nada mais insuportável em mim do que esse acordar saltitante. e quer qualidade maior do que ser organizada? e por outro lado, nada causa mais transtorno ao Poeminha e ao Tatupai do que isto::: a mania de organização e limpeza. e o que dizer dos pensamentos fortes, da coragem de tudo dizer face a face, de obstinadamente não compactuar do falatório geral, elegendo sempre muito poucas pessoas para quem falar? muitas vezes, pode ser visto como falta de educação, pode ser falta de educação, incapacidade de ponderar, de saber usar o tom certo. é tudo assim, não? e quem pode nos perdoar pelas qualidades-defeitos senão aqueles que nos amam? que são sempre poucos. aqueles poucos que valem muito - e tudo.
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creio que sempre trouxe tudo isso em mim. intensifiquei algumas certezas, juntei com outras dúvidas, e, agora, talvez por isso, tenha urgência de que meu filho entenda, embora saiba que é uma bobagem essa urgência.

e por que tentar traduzir tudo isso para um filho de quatro anos? porque não quero que Poeminha cresça pensando que é o "centro do universo", que não pode ser contrariado, que os outros estão à sua disposição. quero que ele acredite no diálogo, mas que saiba que tudo pode ser impasse. impasse que não comunga com nenhum consenso. e que as diferenças são, na maior parte das vezes, intransponíveis. e que conviver com o outro é isto: não é moldar a diferença; é amar o outro, apesar da diferença. e quando não amar, saber simplesmente virar as costas e prosseguir - sem dor alguma, sem mágoa alguma. só com a mais leve das certezas. nada a ver, portanto, com tolerância, que traz sempre o ranço religioso de "sou tolerante porque sou melhor". não. falo de desprendimento. de descobrir e concentrar-se no que o outro tem de mais bonito. é só isso - diria Caetano. 

dia desses, assustada com o que eu pressenti ser uma incapacidade medonha de se fazer amar, e de saber conviver com esse fato, e, por causa disso, tudo fazer para prejudicar o outro, tive que refletir refletir refletir para saber como agir depois de ter "trombado" com uma pessoa assim. em algum momento, pensei: "como Mariamada gostaria que eu reagisse diante desta situação?" pois há diversos momentos em que a voz do outro é determinante. e muito antes de saber o que o outro lhe diria, saber intuir. por isso, essa vontade de, enquanto ele me ouvir, ser a outra voz do Poeminha.

e foi ali, no contato indireto com esta outra que mesmo distante sempre sabe me dizer, que eu compreendi um tanto de coisa, cujos sentidos, depois, tentei, com outras palavras, explicar ao Poeminha, esse ser que amo de amor desmedido.
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