domingo, 8 de junho de 2014

o padrinho



a idade adulta me deu serenidade para olhar de modo complacente o que, para mim, foi uma muito longa e dolorida infância. de todo aquele deserto retiro poucas pessoas. e duas delas, são meus padrinhos. no difícil gesto de distribuir afeto, alegria, cuidado, respeito, atenção, meu padrinho, que carregava o mesmo nome de meu pai, era um mestre. tudo o que sei da possibilidade de imaginar outros mundos, outras vidas, aprendi nas noites lá no Lobo, uma espécie de oásis do deserto, para onde eu ia constantemente, enquanto lá moraram, ou na sala da casa deles, tão próxima a minha, onde ele terminou sua jornada aqui, cercado de cuidados do seu filho, da minha madrinha e de um anjo chamado Toni. por ele e por ela, pela primeira vez, depois de mais de vinte anos, empreendi a longa viagem de rondônia ao ceará para enterrar alguém. para viver esse momento terrível que, bem sei, se a minha morte não chegar primeiro, terei que empreender outras vezes. aqui, vivem tantos dos que amo. meu padrinho era um grande contador de histórias. sua imagem é indissociável das suas histórias. da sua risada. da sua generosidade. era um grande narrador, apaixonado pela narração da própria vida, no que ele viveu e no que ele imaginou, e todos nós, que choramos sua partida, éramos cativos das belezas que ele nos mostrava. éramos cativos da sua voz. e da sua risada, com a qual sempre encerrava suas histórias, e de seu canto, pois ele também cantava. nesses momentos, tudo era beleza. quantas vezes eu mesma balançava a rede, onde ele geralmente contava suas histórias, ouvindo-a encantada, construindo ali meu amor pelas histórias que depois fariam de mim uma leitora.  padrinho tinha o que deveria ser a busca diária de todos nós: paixão pela vida. um arrebatamento e uma entrega raras. nem sempre foi fácil para minha madrinha ter que conviver com tanto transbordamento. mas para todos nós outros, nunca houve o que dizer de senão. nunca houve um só momento de desdita. sempre, sempre, só gentileza. como é que ele conseguia aquele brilho no olho, aquela serenidade, aquela alegria? e sabia compartilhar. quando amava, e amou muitos, sabia como amar. e como disse, sabia cuidar. e cuidou de mim um pouco como um pai cuida de uma filha. quantas vezes eu não devo ter me perguntado naquela época por que não ficava de vez? é que o amor é o impensado. mas, no fundo, eu sabia que meu verdadeiro lar era ali, no coração deles dois, pois por uma sorte grande pude desde sempre saber que o que eles sentiam por aquela menina doente, raquítica e solitária que eu fui era amor. e a isso serei eternamente agradecida. nunca poderei expressar com justeza o significado da lembrança que guardo em mim dele me levando altas horas da noite a cada vez que eu precisava ir ao hospital. nunca poderei dizer o quanto lhe sou grata por esse gesto. pois não tenho dúvida de que foi ali que apreendi um tanto dos sentidos do amor, ainda que muitas vezes me falhe o mesmo gesto. não tenho dúvida de que, apesar desta tristeza, há paz e alegria neste momento, pois elas nunca faltaram em sua presença. acho que meu padrinho, até hoje, foi a única pessoa inteiramente feliz que eu conheci. e ter a sorte de conhecer uma pessoa assim, e fazer parte da vida dela, não é pouca coisa.

* esta foi a última foto que tirei dele, em 2013, quando ele me disse da promessa que havia feito e que deveríamos cumprir juntos. agora, ele me deixou com a missão de cumpri-la sozinha. tem nada não. é quase nada, perto de tudo. sem conseguir ler a versão deste texto, que eu havia imaginado ler em seu velório, por diversas vezes eu disse baixinho: "obrigada, obrigada". e ainda agora, é o que continuo dizendo. 
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