quinta-feira, 11 de setembro de 2014

começos



poderia começar de modo tão seco quanto Silverstein: os dias não têm sido felizes, e por isso escrevo. 
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posso também começar de outro jeito. apesar de os dias estarem muito quentes, continuo a andar de bicicleta. e andando de bicicleta, lembro continuamente de Marie, minha amiga ruiva. ainda mais do que antes e, volta e meia, um sorriso largo se expande em meu rosto. em Paris, andando para lá e para cá com ela, cada uma numa bicicleta (sim, ela não me deixou andar sozinha nenhuma vez!), descobri um tanto de coisa: não sabia andar de bicicleta apenas com uma das mãos, tinha medo de olhar para trás, não sabia sinalizar com as mãos e tenho muito receio do trânsito. excetuando o último, tenho aprendido os três outros movimentos ao relembrar de Paris e de minha amiga Marie, que é senhora das ruas em Paris. esse atrito com o outro, e um outro que se ama, é tão cheio de aprendizados. é como uma música que ressoa no nosso ouvido e não quer despregar. Marie é esta música em mim. e a bicicleta virou o lugar onde me encontro com ela em pensamento. e procuro aprender a me equilibrar. 
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e ainda de outro. gastei uma enormidade de dinheiro com livros na Gibert Joseph em Paris. Marie olhava admirada aquela pilha. como eu olhei, admirando, aquela bolsa Diesel tão a minha cara e constatei que jamais poderia comprá-la para logo em seguida gastar o mesmo valor em livros. acho que Marie olhava tentando entender minha relação com Derrida. porque os livros eram quase todos de Derrida. eu tinha muitos planos com estes livros - ainda tenho. e há um mês, talvez em busca de dias felizes, pus um deles em prática. e me danei a ler estes volumes de livros. e de novo relembrei o choque feliz que é o encontro com o não-saber. me veio uma espécie de pavor terno. o que pode ser um pavor terno. pode ser essa admiração contemplativa com a própria ignorância. e com os limites do tempo. não sei se o terei. o tempo. mas no meio deste pavor terno me veio a certeza de que preciso tentar. o tempo. para mim. para o outro. para este encontro carnal com o outro. para este encontro à flor da pele que pode ser a leitura, pode ser a escrita, pode ser uma noite de amor, pode ser um aprender a pintar junto com o filho. e pode ser também para a infinidade de tarefas do cotidiano. pode. 
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e outro modo. escrever sobre o que não se sabe exige muita sinceridade. sinceridade com o não-saber. mas também com o saber a vir. exige uma comunhão que raramente é fácil. mas que pode ser bem bonita. eu acho bonita. assim como acho bonito aprender a sinalizar com as mãos nas ruas desta cidade em que não se necessita disso. se o aceno é um sinal de querer aprender o que antes não se sabia é bem bonito. tive que por ora abandonar este texto de quinze páginas que escrevi nas noites insones enquanto meu braço ficava pendurado de dor, porque o não-saber me consumiu demais. fiquei tão pequena que foi preciso parar. mas apenas por enquanto. mais livros chegaram pelo correio. tenho muitos planos com eles. e com o tempo. e com os sinais. estão todos aí - e é só preciso aprender a mover o corpo, precipitar-me um pouco para trás e confiar que não olhar para a frente por um instante não tem nada demais.  
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e ainda, talvez por fim. a iminência da perda é sempre um transtorno infinito. não existe nenhuma dor que possa transplantar esta dor. a perda dói mais que a iminência, é certo. porém depois da perda é sempre a chance do recomeço. e talvez seja por isso que a iminência seja tão mais transtornadora. mas de novo, ou quando escrevo ou quando ando de bicicleta, penso em oração. nenhuma oração reconhecível; apenas a doce música do atrito com o outro. então eu lembro daqueles dias tão antigos. das risadas. do único ser com enorme prazer de passear de carro sem destino algum - e apenas a música, sempre a música. e me vem a certeza de que ele vai lutar com toda sua alma de gigante para continuar aqui na terra. e a perda, que poderia ser dupla, abre um clarão. e se retrai. 
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porque tudo são inscrições corporais. deixar-me envolver pelo que sei e ainda não sei e talvez nunca vá saber é o modo mais honesto que encontrei. porque a clausura do que não se tentou é sempre a pior demência. a que me recuso a ter.
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 poderia, ainda, terminar assim: os dias têm sido felizes, e por isso escrevo. 
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