domingo, 15 de março de 2015

Para o Poeminha - sobre o perdão.


 

 
Poeminha, eu achava que sabia muito do perdão. Pensava que já havia me confrontado com situações, uma e outra e outra vez, em que havia sido preciso perdoar o imperdoável. Mas a cada dia que convivo com você percebo que isto, de retirar com a mão cerrada para depois abri-la o que tantas vezes nos aniquila, é um exercício de todo dia. E tantas vezes é você que me ensina isso.  Pois o que se espera de uma mãe é de uma enormidade sem tamanho. E a equação não bate, filho, porque essa espera vem do seu merecimento. Você merece a melhor mãe do mundo. Mas acho que a melhor mãe do mundo não existe, filho. Porque não somos apenas mães.

Quantas vezes fico pensando que você merece mais do meu tempo e que nem todo abraço dado agora será  suficiente:::: dizem que uma hora você não vai querer mais o meu abraço, que vai ficar avaro com a explicitação do amor – e fico me antevendo órfã e desamparada, pensando no quanto deveria ter dado mais e mais e mais abraços, ter ficado mais e mais tempo com você:::: --- na semana passada, fiquei com aquela nave espacial na mão e todas as lágrimas prestes a rolar e você percebeu e ficou nervoso e preocupado e foi logo dizendo que depois papai montaria ---. eu deveria era aprender a desenhar e a montar esses cubos que vêm na sua revista. Coitada da sua mãe que não sabe manusear as mãos, e tirar delas cubos, bonecos, bichos, sonhos. e sem saber moldar a massa, vivo à turras com essas massinhas coloridas que são o meu terror e a sua alegria. Deve ser por isto, por esta sensação de falta, que sempre as compro, e logo depois juro de pé junto que nunca mais vou comprá-las, para depois esquecer os pés-juntos e comprar novamente, mesmo sabendo que vou ficar toda atrapalhada com elas grudando em tudo que é canto. ----- e se eu fosse tio Vandes, heim, filho? Que sorte, que sorte seria a sua...

E hoje deu vontade de sentar aqui, filho, enquanto você está na sala com suas massinhas, porque me deu uma ternura imensa o tempinho que fiquei ali com você, limpando o terreno para que você possa espalhar seus sonhos. E será, filho, que esse aprendizado do perdão que vem de você vai perdurar? porque, talvez, estar sempre em falta seja o prato de cada dia de todas as mães. E que isso é tão próprio do humano, filho. Porque não somos apenas mães, repito. Quanta dor eu teria poupado do meu pobre músculo atrofiado se eu tivesse descoberto isso antes, filho, se você tivesse vindo antes para me ensinar que nesta relação de mãe e filho é esse abismo incomensurável. E se, de algum modo, em algum momento, eu e minha mãe, comigo ainda menina, tivéssemos tido a chance, a sorte, a ocasião, o tempo, o momento. Acho que é o que eu procuro cavar quando lhe peço desculpas. A ocasião. Não deixar passar o não-dito. Ou o dito que fere quando sai intempestivamente. Me vem, logo a seguir, o desejo de ferir de morte esse mesmo dito, de apagar o grito, o gesto de impaciência, de cansaço. Quando eu digo que, "sim, mamãe, às vezes, é bem idiota" é que quero passar a borracha. Para aprender um pouco mais sobre o perdão, naquele exato instante em que você abre o sorrisão e pergunta o que é ser idiota. E eu tendo dizer, de forma capenga, sobre esse mundo das alturas que uma hora você vai alcançar. tento lhe dizer como é difícil ser gente grande, como é difícil isso da responsabilidade, dos afazeres de todos os dias, das mil tarefas que comem nossos dias – e do quanto é uma batalha não deixar que eles comam também nossos sentimentos, nossa delicadeza, nossa pele exposta às intempéries.

E só mais isso, Poeminha.

Esqueça não esse seu gesto de estirar a mão,  esse mesmo gesto que você fez ontem quando eu lhe pedi desculpas por ter gritado e você disse logo depois com um sorriso largo: “então, agora venha aqui para eu dar um beijo nesta barricotinha”, esta barricotinha que é minha barriga que você beija tantas vezes. Quando acontecer o inominável e de algum modo você for invadido no seu templo, lembre que é libertador, revolucionário, acolher o outro na sua indefesa do pedido de desculpa. A primeira vez, filho, que - de uma forma séria, grave, sem retorno - eu senti que realmente precisava decidir qual gesto seria o meu eu o fiz não pela pessoa a quem, por fim, eu decidi estirar a mão. Não o fiz por essa pessoa, filho. Fiz porque eram dele duas pessoas muito amadas. E eu perderia essas duas pessoas, se assim eu virasse as costas. E o que aprendi é que esse gesto originário traz muitos outros, porque é a chance de trazer de novo o outro para junto de si. E é bonito demais apreender o que vem depois quando não sucumbimos à mágoa ou, melhor, quando a solapamos de tal forma que é ela a ficar indefesa, estrebuchando diante das edificações que se levantam como que por milagre só porque a decisão foi levantar paredes depois da invasão:::: e levantar para colocar todos ali dentro. Eu mesma, o invasor, os outros, o que já não se é mais quando se descobre que é de todo dia essa aventura de estar no mundo e não estar só; de estar no mundo e viver essa difícil e extraordinária aventura de viver junto. De estar-com. E não apenas estar.  Estar-com.
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