sexta-feira, 10 de abril de 2015

Vita nuova II







 
 




Mas arrumar as malas é sempre uma dor. Mesmo quando saio de férias, ou vou para uma viagem que quero muito, me vem um nó que se instala não apenas na garganta, mas no corpo todo. O corpo dói; as lágrimas descem, descem. Desta vez, não foi diferente. (Vita nuova) 

eu achei que não ia chorar. eu estava doida para ir embora. em 2015, tem me vindo tanta ânsia e me importa muito vivenciar tudo isso. mas o fato é que eu chorei. comecei a me despedir da turma que eu estava dando aula e desandei a chorar. depois, respirei e expliquei a razão do choro. não lembro de tudo que disse, mas disse algo que nunca vou esquecer, porque foi bem assim:::: "eu vim porque quis. e vou embora porque quero". achei poderoso. não não. não fiz nenhuma revolução. a mudança foi acanhada em vários sentidos. foi quase por acaso, na verdade. mas ainda assim, acho poderoso. não é todo dia.

colocar as malas nas costas - e que malas para tão poucas costas - não se faz todo dia. nunca escondi que vivia em Vilhena como se a cidade não existisse. acho que às vezes parecia ofensivo para as pessoas que adoram Vilhena, mas não era a minha intenção. quem prestou atenção, percebia que eu também dizia que vivia bem. em todo lugar, ou se aciona o paraíso particular ou a cidade importa muito pouco. sempre penso nas milhares de pessoas que vivem em São Paulo como se a cidade não existisse - tanta maravilha - espetáculos, shows, filmes, livrarias, restaurantes - e tantos no seu quadrado. mas às vezes é assim:::: e não há o que fazer.

Vilhena é uma cidade bonita, com ruas largas, para quem tem condições de morar no seu "miolo", como eu dizia. eu morava no miolo numa casa amarela que depois foi virando amarela-desbotada. as fachadas das casas são de encher os olhos. e meu amarelo ofuscava, mas eu bem que gostava. e as ruas são bem largas. eu estava quase familiarizada com elas --- com minha bike para lá e para cá. mas era só isso - para mim.

a linda da Aline me disse que em Vilhena só sente saudade de banca de jornais e revistas. para quem morou em lugares maravilhosos como ela, a afirmação me assombrou um bocado. fiquei envergonhada do meu pouco amor à cidade. mas compreendi. e achei que minha falta também era desta ordem, mas ainda mais larga. e pensando friamente, vou continuar sentindo falta nesta nova cidade que agora habito. pois acho que a minha falta tem a ver com algo ainda mais longínquo e imprevisível que eu não sei exatamente nominar.

eu fui para Vilhena com um tanto de desejos. logo de cara, perdi algumas partes de mim. e reencontrei-as muito rapidamente. uma amiga sabe contar esta história melhor do que eu - com muito humor. eu fico envergonhada quando ouço, mas  o tanto de verdade que há nela carrega o seu charme. eu também costumo dizer que eu tinha que ir para Vilhena para lá encontrar o Tatupai e fazer viver o Poeminha --- e isso já diz tudo::: já diz que Vilhena me deu tudo.

me deu um amor --- que anda com as entranhas estranhas, é verdade. porque o amor às vezes pesa. este ciclo interminável de muitas horas de riso e de lágrima. eu não sei para onde os Tatupais vão com este amor e também não me interessa dizer apenas das flores. tantas palavras inomináveis nos sobram. tem muitas saídas, creio eu. mas como sofro de dicotomia, me vem uma vontade de pensar que só há duas:::: se for de riso, haverá chance. se for de dor, melhor que não. e penso assim porque insisto em sustentar que quase não tenho medo. só tenho medo dos maus tratos do dia-a-dia. sabe::: isso que espezinha. estas palavras espraiadas que ferem como espinho no pé. não consigo pensar no porvir com espinho no pé. quero meus pés bem plantados --- para poderem planar.

e esse amor me deu um filho --- que saiu das minhas entranhas e que me encanta a cada dia, a cada hora, a cada minuto, a cada segundo. e ele nasceu em Vilhena. e não me causou nenhuma dor. e tem sido assim há cinco anos. só isso já faz de Vilhena uma cidade-maná. uma cidade para nunca esquecer. de lá, um filho. de lá, um Poeminha. meu meu meu. tem noites, quando estamos naquela de ler e de "beijar beijar beijar", me vem este dizer de posse e eu repito e repito::: "você é meu meu meu". é mentira, mas por ora é verdade e todo riso que vem daí e os beijos nas barrigas já valem uma vida (dia desses, o Poeminha disse: "se você ler duas histórias, eu dou dez beijos na sua barricotinha". e quem souber, que diga quantas história eu li.

quando Amanda me imitou na festa de despedida organizada pela Rô, ela repetiu uma frase que eu disse --- e o tom era de ironia e de graça::: algo como::: "desejar é perigoso. mas é tudo. tem sonhos que nos levam a Paris; outros nos levam a Vilhena". era o fim da história que eu sempre conto::: que desejei ir a Paris para andar nos corredores do Collège de France, onde Barthes deu aula. A história inconclusa era que eu fui para Vilhena porque eu queria ser professora universitária. Tudo, então, é desejo. são vontades inconclusas. são histórias.

não guardo nenhuma mágoa. vim embora com o peito aberto. sofri um bocado. e me diverti um bocado. e fiz um outro bocado. foram anos intensos. e é disso que me lembrarei. não falarei mal nem de Vilhena nem das pessoas de lá nem de mim mesma quando lá estive. já disse: encontrei um amor, tive um filho, quase morri de doença, encontrei uma grande amiga, fiz coisas maravilhosas na universidade. trabalhei trabalhei trabalhei. e deste trabalho, tão difícil na lida do dia-a-dia, extraí do pior o melhor de mim. lutei bravamente contra a corrupção dos dias, contra a mesquinhez das relações e com isso aprendi um bocado sobre mim e sobre os outros. não desejei mal a quase ninguém e sei que não fiz mal a ninguém. jamais, nenhum gesto que pudesse soar como vingança, mesquinharia, estupidez. uma nordestina "cangaceira", mas que não puxou o tapete de ninguém --- nem no posto de chefe - que ocupei por dois anos::: neste posto, aprendi a alegria do acolhimento e da indiferença. acolhi os que achei que valiam a pena e fui indiferente a todas as estocadas --- e este foi apenas o veneno que espalhei. uma serenidade no meio de tanta palavra maldita. - "as roupas e as armas de Jorge". e acho que consegui porque me impus uma certa disciplina. a disciplina de saber que nem toda gente está de acordo comigo. há o desacordo, a diferença, o estranhamento. e há de se levar em conta isso.  tem pessoas que se orgulham das trapaças que conseguem realizar --- e eu me orgulho de manter o rosto sempre limpo, de dizer as piores coisas olho no olho, sem simulação, sem disse-me-disse. é ridículo, eu sei, no mundo de hoje. mas me dá uma felicidade perversa ter coragem de dizer num mundo em que tão poucos têm coragem do dizer. dizer o dito. e não realizar nada que possa me envergonhar - ou envergonhar meu filho, se um dia ele souber. e é tudo. e assim encontrei a paz antes de partir. e a paz, quando estava lá. e a lição de todos os tempos que carrego sempre comigo:::: o tempo o tempo o tempo. agora, repito: me livrei de tudo - do bom e do ruim - por decreto. uma portaria::: e já mais nada era meu. despossuída, desapropriada, livre. que bonito que bonito é o tempo. e a desimportância dos postos, das coisas, dos dias, enfim. e agora, de novo, a chance de guardar em mim apenas o bonito que foi: a amiga, os amigos, o silic, o gepec, as segundas-feiras do gepec, o filho, as ruas retas na bicicletas, as longas noites de festas na varanda de casa, os lindos lindos (Anderson, Gabriel, Dinalva, Dariete, Carlinha, Mislene, Andrielly) e ainda outros lindos lindos ---- todos aqui, no meu coração, que me disseram de algum modo (prof.ª Araci, como esquecer sua sabedoria? Marisa, sua reviravolta?, Dariano, seu olhar direto e franco? Emerson, sua entrega? Bibi, seu imenso amor pelo Poeminha? Inildo, seu abraço cheiroso e sua sabedoria? Sandra e sua tranquilidade discreta? Aline, sua delicadeza e inteligência assombrosas? Lilianaluna, sua vontade ferrenha? Paula, e seu lindo desejo de viver na alegria? Nilza, sua empolgação? Kotz, por que partiu? Lobão, sempre sua lindeza? E seu pai, como esquecer? E sua mãe, naquela manhã desprevenida em que soubemos toda a dor uma da outra sem nada dizer?  foram poucos. mas foram tantos. e mais, ainda mais, ainda todos que tocaram meu coração de algum modo).

talvez daí o choro. quase sete anos não é pouca coisa. então, ficamos assim. fui. e de lá, tanta coisa bonita. não posso nomear. ontem mesmo tive um sonho --- passei o dia com este sonho, como um acalanto a abrandar a aspereza dos primeiros dias em terra dos outros. e foi de lá. se a vida não fosse do jeito que é, talvez eu pudesse ter feito com que o sonho fosse real. e como teria sido corajoso, imprudente, desafiador. mas ele fica bonito como sonho. e já basta.

e agora, neste entremeio, dentre tantas das minhas frases feitas, dia desses tasquei mais uma: "todo mundo leva seus dentes para onde vai". então, eu vim. e trouxe apenas algumas esperanças. os dentes estão aqui comigo. e se eu quiser que seja diferente, terei que arrancar alguns deles.
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(Vanessa, desculpe. os dias estão tão cheios que não consegui fazer uma postagem bonita sobre a despedida de Vilhena. Mas saiba que dentre as tantas gentes bonitas você foi uma delas. Tão linda! Jovem-casada-religiosa. Uma junção de uma série de predicativos que considero temerosos, mas quanta dignidade há nestes predicativos em você. Um dia flagrei um sorriso cúmplice entre você e Fábio -- e segui com esse sorriso o dia todo como um presente, uma dádiva.  Porque vi tanta beleza! Como não admirar? Obrigada pela presença sempre tão luminosa!)

(Fotos: na cidade que não existia, o paraíso particular::: fotografei a casa várias vezes - para testar a luz na câmera nova, para guardar, mas sobretudo porque eu queria um dia ter fotos com qualidade suficiente para enviar a Mariflor, que tem um blog super lindo sobre casas. Como não consegui fotos com qualidade, protelo indefinidamente este desejo, mas deixo aqui o registro desta casa que construí em Vilhena e que agora está toda encaixotada neste apartamento no Sul da Bahia).
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2 Palavrinhas:

Kennedy Silva disse...

O dom de escrever os sentimentos. Milena que você tenha uma vida linda na Bahia.

Marilza Gusmão disse...

Mile, sua flor! Suas fotos estão lindas,cheias de poesia e candura. Mas, mais lindas do que as suas fotos é a sua tragétoria de vida. Tenho um baita orgulho da sua força e da sua coragem.
E olha, me mande as fotos de sua casa nova, sim! Pois já quero fazer um post cheio de borogodó. Abre as postas dela pra mim?
Um beijo de orgulho de você e um outro no poeminha.