sexta-feira, 25 de setembro de 2015

sou sua mãe há seis anos e nove meses







Poeminha, o dia foi tão bonito que não consigo dormir. e o mérito é todo seu, filho. é você que tem me ensinado a ser mãe. antes de você aparecer, eu nem sabia que queria ser mãe. mas desde aquele dia que parece ter passado tão rápido - para mim e seu tatupai - você nos diz a cada instante que é uma alegria-sem-fim o acontecimento de sua existência. e ontem você me segredou que também é feliz por eu ser sua mãe.

cultivei muitas identidades, filho. forjei algumas. leitora, alegre, lesada, briguenta, problemática, meio doidinha, desmemoriada, egoísta. mas nenhuma me parece tão certeira quanto esta de ser sua mãe. e não. não sou uma mãe modelo. sei lhe abandonar. e fico algum tempo feliz com este abandono. as pessoas ficam como vespas ao meu redor -- e eu finjo que não é comigo. porque eu não sou apenas sua mãe. minto que está tudo bem. comigo e com você. e acredito nisso. mas a cada dia sinto que você é ainda inteiro meu. um menino na minha barriga. um menino que mamou nos meus peitos. e quando não havia mais nenhum leite, e teve que ficar longe de mim, fingiu que não era nada. fez de sua tia Morg uma mãe, fez de um copo com bico duro um peito macio. como fez de tia Rô e tio Inildo e a Bibi e o Tatupai seus portos seguros, quando agora lhe deixei para trás. você é meu filho, Poeminha::: sabe viver bem no aconchego e no abandono.

e é todo mundano como eu. quer ir as Americanas, como eu quero visitar o site da Cultura e da Farm. eu tento lhe dizer que não é isso que importa. porque acredito nisso. mas lhe levo nas Americanas e deixo que você escolha as bonecas e bonecos Frozen. porque acho tão desinteressantes as pessoas que acreditam em um único caminho! ou porque sou como Barthes ---- o que me faltou - agora quero em dobro.

agora você tem seis anos. e eu tento diminuir a altura da sua voz. e apresento a você Alice no país das maravilhas, do Tim Burton. e você não para de me falar no desenho da hora. mas em dois dias, você assiste a Alice uma dezena de vezes. e me segreda::: "mamãe, ela é tão linda!". e faço comida para você a muito custo, mas faço --- comemoro um feijão com bacon e calabresa como se fosse um prato de brocólis e cenouras. e você aprendeu a dançar pendurado na minha perna. e a me dar pequenos murros - com os punhos bem fechados -- quando está zangado. mas logo se arrepende. e pede desculpas. dá beijos, muitos beijos. e eu insisto que não --- não. você não pode. não pode bater em quem você ama. e digo e redigo que é por isso que não bato - é por amor. e é porque tenho dores muito antigas. tenho vontade algumas vezes. porque deve ser mentira quem diz que não tem. ou deve ser verdade. mas a minha verdade é que às vezes tenho vontade. mas não bato. sustentarei por toda a vida que por ser sua mãe devo cortar meu braço antes que ele encoste em você. porque você é um menino que agora está na altura dos meus peitos. e sente um imenso orgulho disso - de se ver crescer. tio Inildo lhe ensinou a medir a "pança". e por analogia, você aprendeu a se medir em mim. e agora sabe que sua cabeça está na altura dos meus peitos.

e assim, Poeminha, vamos nos re-conhecendo. tenho medo que as pessoas leiam o que eu escrevo aqui - sendo você meu interlocutor do porvir - e pense que nossa vida é "bolinho". e lancem um olho grande sobre essa vida-bolinho. mas nos dias felizes como hoje eu prefiro pensar que há mais olhos belos sobre nós do que olhos invejosos. nossa vida-bolinho é, de fato, uma vida bem comum. você é um menino bonito, como são todos os meninos de seis anos. eu sou uma mãe toda doida que tenta acertar - como o são quase todas as mães. a diferença, talvez, é que eu escrevo estas cartas para você. mas que são lidas, primeiro, por outras pessoas. algumas conhecem você. algumas me conhecem. algumas conhecem apenas a minha escrita. porque tem isto, filho:::: a escrita. 

e agora, depois de quase cinco meses, fui lá buscá-lo e não há um dia que eu não me bendiga. que palavra bonita, filho:::: bendizer. você é o que há em mim de mais bonito:::: este amor..... obrigada, Bernardo, por existir. e me ajudar a estar no mundo. obrigada por ter este olhar exigente e severo que me diz que todo amor exige cuidado, atenção e delicadeza. todos os dias, filho, lembro disso. sei que falho. mas hoje, quando faz seis anos e nove meses que soube de sua existência em mim, tentei não falhar. fui inteira sua mãe. não foi uma grande festa como a do ano passado. não tenho o talento da tia Juju, da tia Jucinha, do tio Wandes. fomos ali e você escolheu tudo. estava tudo pronto. nossos amigos e amores, excetuando esses quatro bonitos (Os tios Lili, Marcinho e Celso e sua amiga-irmã Consuelo), estão todos longe. e ainda assim foi bonito, não? confesso, filho, que me enternece lhe deixar escolher::: um homem que me pareceu muito sério olhou com muita raiva quando lhe viu passar com os bonecos Frozen, agarrado a uns apetrechos de Peppa. senti que devia ignorar. minha prenda é mais leve. não tenho que fazer de você um homem modelo. estou aqui apenas para lhe mostrar lindezas. e delicadezas. e cuidados --- na esperança de que você multiplique essas lindezas, delicadezas e cuidados. projeto em você o melhor das criaturas, porque esse é o anseio maior de toda mãe, mas é só isso::: desejos. o que me importa é saber do agora. é agora que quero ser aprendiz, filho. me ensina, filho. me ensina a dar a curva. me ensina a brincar. me ensina a parar. me ensina a estar com você. é só o que agora quero. é só o que quero para o agora. prometo, filho, ser uma aprendiz atenta. e é só o que lhe prometo.  

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terça-feira, 15 de setembro de 2015

sair de mim. vir a ser ---


fiquei pensando que preciso tentar de novo --- continuar nesta trajetória de melhorar o olhar. de cuidar dele e da capacidade de ele ser uma abertura para o contato com as pessoas. isso exige de mim - agora - desviar o olhar. sem perceber, passei os últimos anos obscurecendo esse olhar. obscurecendo-me. 

numa entrevista do antunes filho, ele diz: "Sei ler um ator de costas ou de frente, consigo ver como está o corpo e a voz dele. Em 15 segundos, sou capaz de ver os defeitos e as qualidades de um profissional". sou também uma boa leitora de corpos --- o corpo como um lugar que podemos chegar ao interior -- se alterarmos a dicotomia. não sei como --- mas tenho o dom de perceber com muita clareza quando uma pessoa está desconfortável, quando está mentindo, quando está sendo sincera. olho e vejo. percebo pelas alterações no tom de voz, nos movimentos das faces, dos corpos. e quase nunca erro. duvido muito. mas quase sempre os acontecimentos posteriores confirmam meu olhar --- amoroso ou não. e daí para pensar que sei quando uma pessoa é boa, é falsa, é bonita, é chata, é problemática e linda ao mesmo tempo foi um pulo. digo isso para explicar o obscurecimento do meu olhar. foi por conta dessa visceralidade. dessa proximidade que quase sem querer estabeleço com os corpos. 

mas ter essa percepção é quase um castigo. imaginem:::: amar uma pessoa e saber vê-la quando mente, quando está distanciada, quando está lhe dando uma estocada. é como se eu pudesse ouvir o que falam "nas minhas costas". traz muita tristeza. e deve ter sido isso::: perdi parte do encanto pelas pessoas. sobraram poucas. e foi aí a minha desgraça. porque nesse entretempo perdi o que me permitia só ter alegria no olhar::: esqueci da complexidade do que somos. 

amava muito os loucos e lindos. os que mentiam. os que traíam. os que davam uma estocada bem no meio do peito. eu era uma boa observadora --- e aquela que dava de ombro, dava risada, dava conselho, como uma tia mais velha. passei dessa posição a outra mais incômoda  ((((e que me tem me deixado cada dia mais infeliz)))): a de julgadora --- a que condena liminarmente.

resolvi estar fora de mim, então. ir atrás de mim outra vez. ou mesmo::: ir atrás do que ainda não sou eu agora. e posso vir a ser. é lindo isto do vir a ser.  esse tem sido meu empenho.
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