quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

cosacnaify, merci por tanta beleza














talvez seja difícil explicar o que senti hoje ao saber que a Cosacnaify vai fechar. difícil porque talvez sejam poucos os que podem entender que se sente amor por uma editora --- por uma editora! mas vou começar assim::: este é o tom. quem achar abestalhado pode parar de ler por aqui. esta postagem é para os que amam livros como eu::: anderson aline poeminha rosana lilian gabriel (que não está nestas fotos, mas que compartilha do mesmo amor, testemunha que sou das tantas vezes que ele comprou livros no meu cartão).

não chorei na hora que li a notícia, porque estava em uma sala cheia de gente. mas foi difícil barrar o nó que se formou de imediato. porém, quando pisei os pés dentro de casa, e olhei ao redor e vi os sinais da Cosac por todo canto, as lágrimas vieram como deveriam vir.

sim. tenho amor profundo amor pela Cosacnaify --- compro com uma constância grande e sempre muito. Poeminha tem praticamente todo o catálogo infantil. e eu tenho uma infinidade - de todas as seções::: literatura, arte, cinema e teatro, fotografia, lançamentos sempre tão esperados. quantos livros devo ter, quantos li desses que tenho? quanto tempo gastei fuçando o site? como a partir de agora irei a São Paulo sem ir à loja e sair de lá com sacolas e mais sacolas, tendo que arrastar os livros em malas, em mochilas que curvam as costas para não ter que pagar excesso de peso na viagem de volta?

sim. amor pela Cosac. que começou com uma história que não me canso de contar. todos que me conhecem já a ouviu. todos os meus alunos já esbarraram com ela em algum momento. eu, doutoranda sobrevivente de bolsa, morando no centro de Campinas e indo todo fim de semana para São Paulo sem saber se ia para namorar ou se para ver espetáculos shows filmes exposições. e num desses fins de semana, vou à exposição de Farnese de Andrade, no Centro Cultural do Banco do Brasil. e sinto vertigens. e me extasio. e choro. e xingo todo professor que passou pela minha vida sem nunca ter me falado que Farnese existia.

e continuo falando de Farnese pelos dias seguintes, pelos meses seguintes, pelos anos. e comento com meu orientador que queria ter comprado o livro do catálogo, mas que não havia comprado porque era bastante caro para minha vida de sobrevivente-capes. e ele me diz então que a editora é bacana, que se talvez eu escrevesse para eles... e eu, que nunca faço este tipo de coisa, escrevo, digo que sou uma sobrevivente, que não posso comprar o livro, se não seria possível um desconto... e a Cosac me responde no mesmo dia com uma pergunta que nunca vou esquecer e que foi a seguinte: "Quanto você pode pagar pelo livro?". e eu fiquei toda atrapalhada, toda cheia de emoção, toda sabedora que ali havia um inusitado que merecia ser celebrado para todo o sempre --- e aí surgiu esse amor.

na entrevista em que Charles Cosac anuncia o fim da editora, ele fala várias vezes do estilo "caseiro" do início. e parece lamentar o fim desse sistema caseiro mais que tudo. e eu sou uma das testemunhas desse "estar em casa". lembro de fins de ano em que a Cosac dava férias coletivas para os funcionários. lembro das feiras que ia e de como os vendedores eram solícitos e sabidos, demonstrando paixão pela Cosac tanto quanto eu demonstrava. lembro de uma vez que meu amigo, morador de Rondônia, reclamou do valor do frete e a editora abonou o frete para ele. lembro da vez em que a editora não mais fez isso, mas orientou como fazer para que a compra ficasse mais barata. lembro de mim mesma, em uma dessas feiras da USP, dizendo orgulhosa para uma das vendedoras que eu conhecia todo o catálogo e que tinha boa parte dele.

por essas e outras histórias, desceu hoje em mim, cristalizado, solidificado, o sentimento de luto que me tem vindo muitas vezes nos últimos meses em relação à literatura, aos rumos da literatura, a essa pausterização do politicamente correto que tem tomado conta de todo discurso acerca do literário neste país tupiniquim de não-leitores, que agora arrota arrogantemente que já era o objeto livro, já era o estético, já eram os clássicos, só interessando a literatura adjetivada com algum apêndice da boa consciência. foda-se a boa consciência. Beckett é deus. o cu no livro de Bataille deveria emoldurar muitas capas. quero saber é se existe gente ainda no mundo que tem vísceras para sentar o rabo e ler Guerra e paz, David Copperfield, Anna Karienina, Os miseráveis, sem a merda do discurso de que - subentende-se, só pode - somos todos retardados que não conseguimos ficar mais do que dez minutos fazendo a mesma atividade. mesmo que seja nada. ou sobretudo, nada. livro na rede. livro na cama. livro em qualquer lugar.   

e eu me pergunto quem mais poderá nos dar um exemplar tão lindo da Odisseia, das Novelas exemplares, de Cervantes. para onde irá Tolstói e toda a prosa do mundo. e William Faulkner, como alimentarei meu amor por ele, condenado a partir de agora aos papéis simples e às capas de mau gosto das outras editoras? quem trará de volta em capa-tecido a marginália poética? como vou alimentar esse amor que é tátil, que é pele.

e sem educação formal, como vou saber de arte, de fotografia, de cinema a partir de agora? para onde irão as conversas com os cineastas? quem dará capas duras de plástico colorido a Octavio Paz? embrulhará em papel jornal uma narrativa de Gógol? enfiará em saco plástico o Mario Bellatin? quem confiará no esteticismo de Enrique Vila-Matas, para que eu possa xingá-lo e mesmo assim voltar nele insistentemente? e Zambra, para onde? e Tabucchi? e valter hugo mãe, que declara seu amor pela Cosac aonde vai? e Louise Bourgeois? Tunga? Duchamp? Cildo Meirelles? Bresson? Capa? Korda? Wolfenson? Arthur Omar? onde onde onde? todos órfãos da beleza.

qual editora me dirá o quanto é belo esse objeto retangular? que editora trará  Mary Popppins numa bolsinha a tiracolo? qual delas meterá um buraco bem no meio do retângulo-livro? e pintará de preto e roxo o branco das páginas? e as capas de tecido, para onde?

para onde levarei meus companheiros de viagem em Sampa numa manhã para nos enchermos de ternura durante todo o resto do dia? onde meu filho se sentará no chão e dirá a um coleguinha de seu tamanho que tem este e este e mais este livro?

qual editora me perguntará quanto posso pagar por um livro?
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tenho a impressão de que nenhuma. porque a Cosac sempre me pareceu ser da ordem da paixão. do sonho --- da irresponsabilidade que está em toda paixão. em todo sonho. sim. que dor perder tanta beleza.
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