domingo, 17 de abril de 2016

Somos nós que escreveremos esta história





somos nós que escreveremos esta história. e no momento, talvez seja este o único consolo possível. o discurso dominante que se legitima, no aqui agora, transformando de forma escandalosa nossa relação com o presente, está sendo construído virtualmente. os discursos outros que perfuram esse discurso dominante já demonstram que esses fatos – como artefatos – sofrerão uma violenta revisão da história,  no que ela se compõe das micro-histórias.

em um Brasil partido ao meio, há hoje os vitoriosos e os derrotados – mas essas figuras passarão muito rapidamente pelo processo de carnavalização. as roupagens que hoje cada um veste se esgarçarão. para muitos, é carnaval; e para muitos outros, quarta-feira de cinzas. e a lógica do tempo se encarregará de trocar esses papéis. e isso porque a história, tal como se configura na contemporaneidade, é feita por essas figuras que hoje são menosprezadas pelo que denominamos, em larga escala, de grande mídia::: ainda são os pensadores, os intelectuais, os filósofos, que nos dão a pensar sobre o tempo - o nosso tempo e o tempo passado. 

para o bem e para o mal, os jornalistas são figuras desacreditadas. seres agônicos que vendem suas almas para qualquer um que lhes ofereça um emprego. dispostos a máscaras, abdicam do pensamento. por isso, quando falam, quando escrevem, abdicam da noção de autoria. falam por outros, papagaios inflados que são. basta observar como os âncoras do Jornal Nacional se despedem a cada noite com seus sorrisos de plásticos. felizmente, o tempo será implacável com eles. e não há quem duvide. não há pessoa bem informada, intérprete de seu tempo, que duvide disso.  


quem pensa que o golpe de Dilma terá o mesmo tratamento discursivo, na história, do impeachment do Fernando Collor não entende nada de história. é só observar. Collor não foi perdoado pela história. temos orgulho do movimento que o levou à derrocada, ainda que ele tenha voltado à cena política. é um pária. é apenas uma imagem triste do quanto ainda temos que avançar para termos votos livres do cabresto do poderio econômico. 

esse desprezo nunca será ofertado a Dilma. se daqui a algumas horas for confirmado o golpe que lhe tirará da presidência desta republiqueta de bananas, Dilma entrará para a história. a figura de Dilma ficará cada vez maior. ela será a primeira presidenta mulher que foi destituída pelo parlamento mais corrupto da História do Brasil. Logo mais, não se lembrarão dos seus fracassos, de suas escolhas equivocadas, da sua incapacidade de articulação política. Dilma será, logo mais, a grande figura desta história triste de um país que ainda não sabe lidar com este conceito tão forte e ao mesmo tempo tão frágil que é a democracia. Dilma será a vítima. lembraremos para sempre de seus, talvez, últimos dias no poder, em que ela encarnou a imagem de uma mulher com a arrogância necessária, com a coragem necessária. para sempre lembraremos de Dilma no seu ocaso. da sua voz firme a afirmar que sofre um golpe. que pela segunda vez na sua história individual, que se confunde com a história política deste país, ela é uma injustiçada::: ela é a torturada; e os outros serão os torturadores. na história, Dilma será esta figura da honestidade --- aquela sobre a qual não pesa um só indício de enriquecimento ilícito pessoal. e nos restará a imagem de Dilma, jovem, sentada diante de um tribunal --- altiva. sobrevivente. 

Temer pode governar, o mercado pode reagir, as alianças políticas que garantem a governabilidade podem se concretizar, nesse linguajar economês para pobre entender, e mesmo assim, ele será para sempre, na história, um governo ilegítimo, que alçou ao poder a partir de artimanhas rasteiras.sua figura é desde agora de um homem fraco, que chegou ao poder não pela sua força e coragem, mas pela desfaçatez, pelo conluio de forças daqueles que aprendemos dia a dia a menosprezar, a detestar, a sentir vergonha.

logo mais – e isso já começa a ser feito -  os veículos de comunicação, eles mesmos, tentarão convencer a todos da sua imparcialidade, e demandarão de nós a crença de que os acontecimentos narrados foram os acontecimentos acontecidos; mas  não haverá retorno. eles pagarão o pato. o pato que cobriu a esplanada e os principais jornais impressos e virtuais do país que, falidos, são capazes de fazer qualquer coisa para esconderem seus dias de agonia. porque o pato, como tudo, era uma cópia. era um simulacro. e como tal, transformar-se-á no símbolo do desrespeito e da falta de criatividade. o pato é um roubo. e o autor estava vivo para denunciar esse roubo. 


ainda que a Rede Globo, Folha de São Paulo, Estadão e seus reprodutores jamais nos peçam desculpas, não tenham dúvida de que não haverá redenção para eles. são a partir de agora, e cada vez mais, uma mídia golpista, mesmo que esse discurso abrande, mesmo que a palavra golpe seja esquecida; na história, quando a reflexão ocupar o lugar desses discursos agônicos, oportunistas, o veredicto estará dado, a acusação estará feita e referendada. e isso porque o discurso reflexivo tem um poder imenso.  não há a menor chance da cara de rato do presidente da câmara Eduardo Cunha ser absolvido pela história. ainda que os cidadãos que hoje bradam por um justiça inalcançável continuem a pensar que estavam do lado certo, cada vez mais terão que se recolher ante a sua própria vergonha. tem sido assim desde sempre. basta conhecer um mínimo de história para saber que assim será. ainda que agora nos pareça muito tempo, a geração seguinte, a geração de meu filho, os amigos dos amigos de meu filho sentirão vergonha de seus avós, de seus pais que saíram às ruas para defenderem o indefensável. 

agora, ninguém parece ver que o partido que poderá governar o país a partir de segunda-feira tem em seu quadro um membro com comprovadas acusações de roubos milionários (o que é um duplex de setecentos mil reais quando se tem a comprovação de mais de cinquenta milhões de reais?). e esse partido sequer fala num processo de expulsão, ou até mesmo de suspensão desta banda podre, equiparando-se, assim, a esta banda podre. agora, não se fala sobre nada disso. porém logo mais não se falará de outra coisa. ainda que esse logo mais demore décadas. do que lembramos da desastrosa gestão de Zélia Cardoso de Mello como ministra da economia do governo Collor? lembramos apenas de quando ela, já não mais ministra, nos disse: o povo está só

agora os discursos são agônicos, imediatos, mediados por uma torrente de informações que, na verdade, é apenas uma.  são discursos feitos para não serem pensados. o que se espera é a ação, é a revolta. é a lógica do escândalo, o gesto automático, o grito. quando essa febre repousar, nada disso restará. porque, repito, quem faz a história é aqueles que refletem sobre ela. os discursos de agora são discursos vazios. um congresso que ignora o que considera os discursos dos derrotados não terá voz nem lugar.  

e tudo isso porque Dilma logo mais deixará de ser Dilma. ela se transformará no que, desde sempre, constrói nossos discursos sobre nós: como sujeitos, como pessoas, o que almejamos é um lugar/tempo democrático para existir, ainda que não saibamos bem o que seria isso que defendemos com tanta força:::: a democracia. a liberdade. o direito de voto. o poder anônimo do voto comum. 
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e não sou analista política. nem futuróloga. mas tenho me dedicado nos últimos anos - desde que comecei a me incomodar com a ignorância generalizada das redes sociais e tive medo de, por falta de leitura no campo da política ficar igual - a este exercício da compreensão. tenho visto. tenho lido. tenho avaliado. o tatupai tem visto, ininterruptamente, a Tv câmara. e por vezes, eu lhe imploro: "desligue, não aguento tanto horror". sim, horror. estes homens terríveis, ignorantes, analfabetos políticos, reacionários, a nos representar. não sabem falar, não sabem concatenar um pensamento. são como porcos. porcos! grunhem altos, mas dali nada sai. é por isso que hoje tenho a convicção de que não serão esses discursos que permanecerão. 

pode parecer pouco. mas garanto:::: é muito. vejam a Alemanha::: por que hoje ela nos parece - ainda que não seja - este oásis de liberdade, oportunidade, unidade?::: porque ali há um povo envergonhado com seu passado, que tenta a todo custo reescrever sua história. logo mais, seremos nós a desejar reescrever esse passado podre.

seremos nós, logo mais, a sentir esse gosto amargo da vergonha. e eu, ainda mais velha do que agora, poderei olhar pra meu filho, olho no olho, e lhe dizer::: não tenho nada do que me envergonhar. e por isso, poderei legar ao meu filho esse despudor. este ser pensante que agora me obrigo a ser. 
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se acreditasse nos deuses, se a crença me fosse suficiente, eu diria: oxalá. mas não acredito. estamos irremediavelmente sós. se daqui a pouco, o horror se concretizar, chorarei cântaros. chorarei alto. serei a imagem do desespero. mas quando a dor passar, restará em mim a convicção de estar do lado que vale a pena estar. a serenidade virá. e estarei pronta para as novas batalhas. 

por mim. pelo Poeminha que agora dorme do meu lado. quando ele acordar, ainda estarei aqui, a professar meu orgulho. se a história é repetição, poderei dizer a meu filho, logo mais, se tivesse estado lá, quando se encheram comboios de trens levados para a câmaras de gás, eu seria uma dessas dizimadas; se tivesse estado lá, nos anos 1960, no Brasil, eu teria sido, como Dilma, uma das torturadas. eu teria estado no pau de arara. eu seria uma daquelas que teriam enfiado um ferro na minha vagina, teriam queimado os bicos de meus seios, teriam me aleijado. e eu teria resistido. orgulhosa que sou, teria resistido. e teria deixado como herança a minha coragem. 

esta mesma coragem, que é também entendimento sobre o que agora acontece, que me impele agora a estar do lado da democracia e pensar que sobreviveremos. somos sobreviventes. e carregaremos conosco esta certeza. e a espalharemos. como vagalumes. sim, vagalumes, nesta grande escuridão de desesperança que agora nos recobre.
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