quinta-feira, 30 de junho de 2016

sobre ser doutora. ou sobre a campanha de "ser mais"



doutor que não pode dar receita nem aplicar injeção, para mim, não é doutor. essa é uma das falas que guardo do meu padrinho, que esteve na minha vida para me salvar algumas vezes da morte e da inanição. como de costume, depois de me dizer isso, soltou a sua gargalhada que lhe era própria. e eu ri junto. solta, livre, feliz. doutora sem poder dar receita nem aplicar injeção, quando fui trabalhar em um departamento universitário onde havia apenas dois doutores, transvestidos de deuses, adotei a gargalhada do meu padrinho como procedimento para rasurar o mito do doutor. falava do doutorado como um hiato em que assisti a mais de mil filmes, perambulei por parte da Europa e assisti a todos os shows que desejava na vida --- interiorana deslumbrada com cidade grande que nunca deixei de ser. somente em situações muito específicas, eu dizia, ainda em tom jocoso, que havia lido os mais de 60 livros do autor que eu pesquisava e que havia conseguido porque sofria de insônia crônica desde sempre. custo a acreditar nisso, embora seja verdade, desmemoriada que sou. e não dizia 'autor". dizia::: “o cabra que inventei de pesquisar sem saber nada dele até decidir estudá-lo”. fazia parte da desconstrução do mito.  apenas uma vez, bêbada, provavelmente encurralada na situação em que havia me metido, me ouviram dizer algo como “eu sou doutora”. tenho muita vergonha e agradeço aos deuses a amnésia alcoólica que não me deixa lembrar o momento em que proferi tal asneira como sinônimo de arrogância de um saber que provavelmente não tenho. 


por essas e outras me causa espanto que alguns gestos que, na sua constituição, nada têm a ver com o fato de se ter um título de doutorado sejam interpretados como parte do "ser doutor" encarnado em arrogância e desrespeito. e quero crer que isso faz parte do ódio generalizado que se tenta implantar em parte da população por meio da construção de discursos como os que afirmam e reafirmam que professores universitários, por terem uma carga horária de aula que não equivale aos professores de outras categorias, devem ser fichados como vagabundos, elitistas, uma vez que num país onde o salário mínimo não dá conta dos bens necessários para uma vida digna ganhar 10.000,00 seja uma ofensa. um crime. que deveria ser pago com a pena de trabalhos escravos. pensar desse modo é um equívoco porque desfoca o problema para outro lugar. em vez de se lutar por salários justos para todos, condena-se uma categoria que aparentemente conseguiu esse lugar, sem sequer investigar o que se trabalha para além dos tempos-aulas. 


e é ainda mais perverso quando se é condenado, fichado, justamente pelo gesto do fazer – a partir disso que aparentemente é uma zona de conforto. que vontade move um doutor, hoje, numa universidade periférica, sem nenhum recurso auxiliar, a propor e executar um curso de extensão, um evento, um projeto ou mesmo a inscrever esse projeto em programas de bolsas estudantis, senão a vontade de fazer, uma vez que seu salário, em vez de aumentar, é subtraído por essas ações? o que faz um professor, hoje, retirar parte desse salário, que lhe é garantido por lei, para viabilizar essas ações? foi o que fez uma amiga linda nestes dias e agora está sendo enxovalhada nesta rede social que dá a qualquer um o seu minuto de fama. e não apenas o salário, mas o seu tempo que poderia estar sendo ocupado por uma infinidade de outras tarefas igualmente ou mais interessantes, como estar atenta ao crescimento do seu menino, ler aqueles livros encalhados na estante, ver o filme que parece que todos viram, menos você?  eu não posso dar uma resposta generalizada, mas posso dizer por mim e por alguns desses doutores que hoje me cercam que o que nos move é um desejo de comunidade, de partilha. 


e para que não se pense que quero com isso angariar simpatias, é preciso que se esclareça mais uma peculiaridade do mundo tipicamente acadêmico. essas ações comuns, que remetem ao coletivo, à partilha, são o que menos vale no tal lattes --- essa plataforma a partir da qual nos acusam de que a única motivação do nosso fazer diz respeito ao intuito de preenchê-lo. se eu ou qualquer um desses doutores acusados de querermos “ser mais” como sinônimo de subtrair os direitos das minorias nos debruçarmos sobre a escrita de artigos acadêmicos – um gesto necessariamente solitário, longe da partilha -, angariamos mais pontos do que qualquer ação em comunidade. é preciso realizar uns dez ou mais cursos de extensão para que valham a metade de pontuação (no tal lattes) desse gesto solitário de escrita – que eu, aliás, adoro fazer, mas que o faço, por costume e por deleite, apenas nas longas noites frias ou quentes, enquanto meus dois homens dormem e a música toca quase silenciosa lá na sala.


na efervescência dos dias, faço o oposto dessas noites --- eu me encontro com gentes.  e com elas sorrio, gargalho, faço planos, teço vontades. e por conta disso, são também assim meus amigos. jesuscristinho me afaste de qualquer um que não faça do título de doutor apenas um dentre os tantos sentidos da vida. doutora? sim e não. tão doutora como sou mãe, sou esposa, sou dona de casa. e principalmente sou gente --- que está mais a fim de delicadezas, de embates honestos, de lutas precárias do que pôr na frente um título que, na verdade, só tenho a agradecer porque fiz do tempo da sua construção os anos mais felizes e inteiros de minha vida. e isso porque entreguei a esses anos meus últimos desejos de juventude, que eram grandes, intensos, meio malucos. e tive a sorte de estar ao lado da minha melhor amiga da vida inteira e de um orientador que não canso de aprender com ele -- desde o dia que o vi pela segunda vez e ele me olhou grave, quase terno, e perguntou: “por que você estava tão nervosa?”. nunca perdi  parte daquele nervosismo inicial, mas agreguei outros sentimentos e destituí tantos outros. muito tempo depois, ele me disse algo como: “você escreve bem, mas não é tanto assim. ou se responsabiliza por sua escrita ou vai continuar escrevendo obviedades que você acha que os outros não percebem. eu percebo tudo. os sensos comuns, as frases feitas, as lacunas de saber”. uma frase dessa não tem o mesmo teor da frase do meu padrinho. e eu não gargalhei. pelo contrário, chorei muito. mas não o acusei de estar usando o seu título de doutor, que eu ainda não tinha, para me humilhar. nem deixei de amá-lo como o amei desde que o senti como alguém que poderia me ensinar um tanto. não sei se algumas vezes depois disso, cometi o mesmo pecado da soberba, mas se há moral da história, posso dizer tranquilamente que reconheci desde ali que ele estava certo. e que ele podia e devia me dizer o que disse. pois humildade não é prerrogativa de estudante nem arrogância é predicativo de doutor. e o que ele me disse ali nada tinha a ver nem com uma nem com outra. e saber reconhecer isso, na hora devida, não deixa de ser um dos saberes que se deve cultivar dia a dia. 

e ainda. tenho profundo amor pela minha tese. e ela foi lida, apenas, por umas cinco pessoas. e ainda assim, com esse amor, sei e reconheço que ela poderia ter sido uma tese muito mais "profunda" e que foram as minhas escolhas - dos mil filmes, das viagens mais fodas pelos países que ainda quero levar o Poeminha e o Tatupai, dos tantos shows - que a fez ser do jeito que ela é. honesta, bonita, inteira, mas dessa inteireza do humano. não culpo ninguém, nem a mim mesma, por essas linhas que, de todo modo, foram as que eu consegui traçar. 
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e claro, eu poderia falar da graduação, para me aproximar dessa zona de (des)confronto que gerou este texto. falar que trabalhava três turnos, que já tinha insônia que me fazia atravessar as noites sem dormir um segundo e me fazia dormir em plena sala de aula às 15h da tarde, que eu não tinha tempo algum, mas que era uma das poucas a ter projeto de iniciação científica em toda a universidade, que era mais brava do que sou hoje e que sustentava essa braveza - apesar de dormir diante de um tanto de professores - com o que eu conseguia fazer. e o que eu conseguia fazer era muito --- algo como """um professor pode me odiar, mas jamais me dar uma nota ruim, porque o que eu consigo fazer nos intervalos não abre brecha para a nota ruim"""". --- é claro:::: ainda não conhecia meu orientador de mestrado e doutorado e sua inteligência suprema e generosa. mas já sabia me curvar, inclusive, àqueles que estavam à cata do meu menor deslize, além do sono.

e entenda quem quiser. mas não me venham com discursos pseudopolicitamente corretos. não sou dessa época. e eu sou nordestina-cearense, cabeça chata, filha de mãe brava e pai carroceiro, passei fome de comida boa. sou das cotas em uma época em que não existiam cotas nem auxílio algum. meu discurso é da guerra. mas jamais da vitimização. e só entendo essa língua. que é a minha língua desde menina. não é minha língua de doutora. não assino "doutora" em lugar algum. meu nome é milena. e é com ele que me sustento onde vou. nem meus amigos mais amados assinam "doutor". nunca me dirigi a nenhum aluno apontando esse título. e até chegar aqui, nesta universidade em que se fala muito de direitos, mas quase ninguém aparenta entender de deveres, jamais havia reprovado um aluno, seja por falta, seja por nota. e apesar disso, sempre havia sido tratada com cuidado. um cuidado que me dispensavam, embora soubessem que estavam, de antemão, aprovados em qualquer disciplina que eu ministrasse. aqui, tive que mudar isso. um aluno aparece em um dia de aula e doze aulas depois tem coragem de me perguntar quando ele pode apresentar os trabalhos do componente. como se essa mudança - de disciplina a componente - pudesse dar a ele o poder da passagem. não pode. e pode --- se me provar que sabe o que ali ocorreu com os corpos que estavam em doze aulas que ele não esteve presente. então, não me peçam concessões. porque eu nunca as pedi. a vida toda, eu só exigi. e o que era do meu direito. o que não era, o que era e ainda é forjado pelas facilidades do discurso não me enternece. nem me convence. quem quiser estar comigo, e com meus amigos, nesta aventura do saber que é também sabor, seja super bem vindo. tenho na minha conta alunos que viraram amigos dos mais bonitos. amigos que amo mais do que eles me amam. e é por causa deles que posso dizer tudo isso --- porque são eles, que me reconhecem, que sabem quem eu sou. que eu não faço pose de doutora. nem meu amigos fazem. que eu sou doutora e sou gente que quer saber cuidar a cada dia. e sei com quem ando. e quem anda comigo.
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domingo, 12 de junho de 2016

uma vida meio monalísica - notas de minha vida (a que tenho e a que desejo)













porque tenho trabalhado muito, porque tenho travado lutas bestas, ainda e apesar de tudo, tenho tentado encontrar bons amigos nesta terra estéril. e tenho tentado seguir meu curso. seguir o curso significa tentar respiros.

em algumas manhãs, enquanto meus homens dormem, eu vejo filmes. ou leio livros. ou esqueço a alergia do Poeminha e passo dois dias sem tirar o pó da casa. esse hiato me permite ler várias páginas e me demorar naquilo que seria meu centro se eu pudesse me demorar mais nele.

o silêncio da televisão me faz bem. é estranho, muito estranho. enorme alívio do barulho que vem do mundo. porque o que acalma é a música. ou o silêncio.

tenho ouvido Bjork. muito. comprei o seu penúltimo cd por um preço exorbitante. depois saiu a versão nacional e eu me senti meio estúpida. mas na última vez que fui a Sampa, com o cd nacional em mãos, comparei mentalmente os dois objetos e agradeci a minha insanidade. é tão bonito e tão complexo o objeto-cd da Bjork na sua versão primeira! reconheço Björk desde sempre --- como uma voz que me toca, que me diz um tanto.

nesta semana, Tunga morreu. minha amiga Rosana me perguntou quem era Tunga. e eu chorei de novo. como um dia pensei sobre Farnese de Andrade, penso que todos deveriam conhecer a obra de Tunga. e que eu deveria conhecer mais profundamente. o que é o mesmo que dizer/ desejar que a arte ocupasse um lugar mais constante em minha vida. e na de todos. e isso poderia ser o modo de escaparmos das misérias do mundo.

dia desses, num momento de ira interna, eu disse que minha vida era uma piada. ou eu fazia isso. ou aquilo. e nenhuma das duas opções me eram satisfatórias. se eu tivesse tido a sorte de essa frase estúpida ter sido flagrada por quem estivesse disposto a ouvi-la, eu teria sentado e chorado. como nem sempre a chance vem, eu continuei furiosamente estendendo roupas no varal. estender roupas no varal como quem estoca todas as frustrações.

mas eu tenho a sorte de ser meu próprio exército. e ter uma liberdade interna rara; talvez muito rara. li Matteo perdeu o emprego de um fôlego só. quando terminei, eram 10h da manhã. e Poeminha ainda dormia ao meu lado. e queria registrar isto::: olhei para ele, agarrei bem forte e disse: "filho, você não tem ideia de como meu amor por você é grande". e adormeci às 10h da manhã, pensando em Aline, a moça linda que amo desde antes, que havia me indicado o livro, naquele momento em que ela me disse que fotografar era tão estranho. e eu lhe disse que, sim, sabia de tudo isso, mas que amava fotografar desde antes que fotografar fosse estranho.

perdi-me durante uma manhã inteira depois de receber umas mensagens de Laura Erber. imersa em suas indicações. à noite, encontrei outra Laura e disse: "endoideci um pouco hoje. e foi bom". e bebemos umas para comemorar as loucuras maravilhas diárias. Laura Erber é a escritora sobre a qual estou escrevendo um texto. --- o texto até agora tem dez páginas. e gosto do texto que ora escrevo. mas ele nada diz do que há de essencial na sua obra. são texturas. e me veio uma ideia absurda::: eu não quero surpreender a escritora; talvez, aqueles que a leem. pois nossos mundos de leitura não se encontram. e como posso conhecer uma obra sem conhecer o que a sustenta? é o que ainda não respondi nas dez páginas que por ora escrevi.

o carteiro me acorda logo cedo. desço meio grogue. e ele já está com a desculpa pronta::: "desculpe, milena, não é para você. é porque sempre que é livro, penso que é para você". tenho vontade de abraçá-lo.

convocam para que eu fale na semana de acolhimento na universidade. e eu, exército sozinha no campo minado, digo: digo que estou de luto. e na luta. contra o golpe. e que agora temos a prova de que não há grandeza em nós quando a história nos convoca. sinto uma solidão terrível, embora esteja com uma blusa que me faz parecer meio riponga. 

talvez por isso lembrei dia desses dos meus tempos de quase hippie --- quando era acolhida pelas praias de Natal, naquele tempo tão distante. por incrível que pareça, eu era mais presa do que hoje. era mais severa. é de Natal a única lembrança vívida de um grande desejo de morrer. depois daquilo, sofri vez ou outra por causa de outro - aquele outro que escolhemos para viver a dois -, mas nunca mais me deixei sucumbir. 

há menos de dois anos, sofri outra dor intensa. perdi não apenas algumas ilusões. e parte do amor que havia em mim. mas também crenças. e isso foi o pior. sofri sozinha e chorei muitas e muitas vezes. com um ódio gigante por estar chorando. criei uma casca de arrogância e proteção que somente as noites embriagadas, à vista dos outros, deixavam entrever o meu grande desespero. mas a lembrança de promessas arrancou de mim um tanto de coisas ruins que poderiam ter ficado estocadas - o que eu não queria de modo algum. e encontrei um cuidado de si em mim que cheira a vaidade. mas é puro amor. um gastar de tempo que me dá amor-próprio. e a certeza de que tudo está em nós. ninguém pode fazer por nós o que podemos fazer mais e melhor.

passei a amar Hirokazu Koreeda quase por acaso. ele e suas crianças. acho que fui uma de suas crianças, sobreviventes dos adultos. sei que é bonito. porque esta é minha luta diária::: "lembre, lembre, lembre de como era quando era preciso levantar a cabeça para olhar para os adultos". //// e eu lembro. e dói muito.  e ao mesmo tempo dá uma alegria imensa esse poder de lembrar. talvez seja por isso que, ainda que eu não lhe dê tempo suficiente, seja tão fácil enlaçar o Poeminha e falar de amor.

a estética de Koreeda obriga-nos a baixar os olhos, agora que tudo é adulteza.

já tive alguns gatos em minha vida. mas foi com Nina que passei a entender o verdadeiro sentido de ter um animal de estimação. o cuidado que isso exige. e o bem que faz ter um bicho sempre do seu lado. é um não estar sozinha de uma potência incrível e inesperada para mim. 

dia desses, minha irmã Morg me disse que causa a ela muito espanto a minha pouca fé. porque, para ela, minha vida é um milagre. ser uma sobrevivente, tão à beira da morte durante toda a infância e na vida adulta com o guillain-barré. e eu lhe disse o que penso desde sempre:::: acredito numa força. tenho fé. o que não acredito são nas religiões. se eu tivesse a certeza de que os que estão lá são bons, eu acolheria uma religião. já me senti acolhida em duas religiões, mas não o suficiente para suspender todas as suas enormes contradições, e é essa descrença que é confundida com não fé. Poeminha me perguntou dia desses porque não rezo. e antes de responder, eu amaldiçoei mil vez a sua escola. e menti para ele::: "não rezo porque não me é necessário". porque eu rezo. mas as razões por que rezo nada dizem respeito a qualquer religião.

Tatupai e eu temos diferenças irreconciliáveis. às vezes, pergunto-me porque nos amamos. e essa pergunta por si só já dá um alívio grande. saber do amor é sempre uma claridão no meio do escuro. eu gosto da integridade. e queria tirar com um sopro todo aprisionamento que há. porque amo bastante.

acho que é muito fácil plantar o ódio. --- escorpiana que sou, tenho ódios. mas são ódios fugazes. tão ligeiros que quando dou por mim já nem tenho notícias deles em mim. a ruminação dura o tempo de uma faxina. 

eu tenho muito orgulho de cuidar da minha casa. de ser eu a cuidar de tudo. mas me causa muita exasperação. demanda tempo, muito tempo. e há dias que eu mesma me espanto::: "qual será a mão silenciosa e imperativa que me impõe tanta disciplina na arrumação da casa?". eu passo roupas sete horas seguidas. ninguém entende um gesto deste. às vezes, quando estou muito irritada com as pessoas que me criticam por fazer isso, vejo aí um enorme preconceito de classe. como se eu, professora universitária, não pudesse assim fazer --- um trabalho relegado para a ralé do salário mínimo ou nem isso. por outro lado, eu mesma acho absurda essa disciplina. talvez por isso, criei a técnica de passar roupa assistindo a filmes. sim, isso exige técnica. 

e adoro o frio. e não tem nada a ver com a experiência de Paris. e a experiência de Sampa. tem a ver com o ser ruminante que sou --- acabei de dizer isso a minha amiga Ro.  o frio é um útero para quem pensa o tempo todo. e sim, eu penso o tempo todo. eu me analiso, analiso minha vida, a dos outros ao meu redor, repasso as cenas cotidianas, meus gestos, os meus não-gestos, o que eu queria fazer, o que eu não consigo fazer de jeito nenhum, o que eu juro que conseguirei e que não passo nem raspando; toda essa ebulição causa também muita exasperação, mas uma grande intensidade. é por esse pensar contínuo que faço mil tentativas - o tempo todo. até há dois anos, achava que nada me passava despercebido. foi uma das crenças que perdi. mas esta perda - apenas esta - foi muito boa. 

ser a mãe de Poeminha não é nada fácil. e é de longe a experiência mais poderosa de minha vida. é um teste. como pode? como se alguma força para além do explicável o tivesse colocado na minha vida. para testar minhas teorias. e eu ganho várias, modéstia às favas. mas por vezes perco no essencial. ele e seu universo feminino. agora, ele quer se apoderar do meu guarda-roupa, à mostra de seus olhos, aberto que é. e me pede o que - para meu espanto - me pareceu até agora ser o mais difícil. e joga na minha cara a frase que eu lhe ajudei a construir: "eu não me importo". e numa noite linda, rodeado de confiança, surgiu diante de nós, com uma linda fantasia de princesa, tiara na cabeça. e estava tão tão tão lindo e tão inteiro. com a frase que é minha e que eu lhe doei. 

porque não se importar com a tirania dos outros é a maior libertação que se pode aprender.
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(o título vem do documentário Tarja branca, a que assisti - do início ao fim - com o coração na mão. e as fotos foram tiradas em tantos momentos. em alguns, eu estava irremediavelmente bêbada --- o olhar torto, mas cheio de poesia. e são sem filtro algum. pq o único programa que eu sabia unicamente intensificar as cores sumiu do notebook).