sexta-feira, 26 de agosto de 2016

A responsabilidade da forma - ainda a abertura das olimpíadas


 Agora que a pira olímpica já apagou, sob chuva e música de Marisa Monte, me dá vontade de tratar, de forma extemporânea, um pouco sobre a abertura das olimpíadas em contraponto com o seu encerramento. --- nada demais. duas ou três palavras para guardar. 

Assisti com prazer à abertura e emocionei-me em vários momentos, como teria me emocionado diante de qualquer espetáculo bem realizado, e também tive fastio em outros momentos, como em qualquer espetáculo muito longo, sempre mais propenso a altos e baixos. E poderia acabar aí o que eu tinha a dizer, uma vez que não pensei na abertura como uma prova de capacidade, de transfiguração, de heroicidade, de representação do Brasil e do povo brasileiro. 

Aliás, tive ímpeto de assistir porque sabia previamente que havia ali uma assinatura, ou melhor, assinaturas de artistas que admiro desde muito. Poderia mesmo dizer que foi por conta de Deborah Colker, que coordenou a coreografia, assim como já me dispus a fazer um trajeto de mais de duas horas, com direito a pegar metrô, ônibus e táxi, para assistir ao seu espetáculo , no Teatro Alfa, em São Paulo.  

Talvez por conta desse "ímpeto das assinaturas", não tive muita paciência diante das inúmeras críticas negativas que surgiram em nome do que chamaram de "estetização", "espetacularização", "apoliticismo", advindas de diversos setores e, sobretudo, do artístico. Como acontece muitas vezes, quando vejo críticas desse tipo, que exigem uma posição do artista que responda a anseios de palavras tão gastas como "conscientização", "responsabilidade política", lembrei-me de uma ideia também muito gasta, mas cada vez mais em desuso na nossa crítica tupiniquim, a qual propaga hoje por uma responsabilidade do artista geralmente ligada à concepção de que este deve se manifestar sobre as mazelas do mundo de modo direto e cru, como se estivesse dado o que seja "direto" e "cru". 

Lembrei-me, pois, de Roland Barthes e do tipo de responsabilidade que ele propunha, quando escreveu que "a escritura é ... essencialmente a moral da forma". Ao apontarem que o espetáculo comandado por Andrucha Waddington, Daniela Thomas, Abel Gomes, Fernando Meirelles e Deborah Colker foi revestido de contradições que o levavam, de imediato, à impostura artística, não pude deixar de pensar que a exigência hoje não é pela responsabilidade da forma, pela depuração da linguagem própria do artista, mas, sim, pela anulação dessa linguagem em prol do grande alarido do mundo, que exige cada vez mais uma "correção" das linguagens. 

O que me parece mais perverso nesse tipo de exigência é que ela aparece apenas quando se aponta o que o outro faz, não se sabendo distinguir o que seja da ordem da posição do artista e do que seja da ordem da linguagem de sua obra. Qualquer um que conheça os trabalhos de Andrucha, Daniela, Abel e Fernando, facilmente reconhece ali a "Natureza" de suas linguagens; há mesmo releituras explícitas do que já fizeram em outros trabalhos. As exigências, portanto, situaram-se para além dessa "natureza", apesar de ser contra esta que as vozes se elevaram. Então, é uma crítica que não analisa a obra em si, mas "como" ela deveria ser segundo os ditames do "tempo". O que não se percebe é o quanto isso constitui um fechamento nas possibilidades artísticas que, em última análise, afetam a todos os artistas. Uma foto que circulou muito no Facebook, na qual se tinha a visão de um grupo de pessoas em um barraco vendo ao longe o espocar dos fogos no estádio olímpico, virou o signo do que parecia ser a "irresponsabilidade" de tal festividade diante da precariedade do real.  Fico imaginando escritores, músicos e tais que, no dia a dia, exercem um trabalho de crítica sobre o que acontece no meio político e artístico, mas que em suas obras resvalam para outras discussões em que não expressam claramente esse vínculo crítico-criador e muito menos essa "precariedade do real". Queimaremos todos esses artistas ou consideraremos apenas o seu trabalho crítico? É esse tipo de escolhas que se coloca sub-repticiamente no tipo de crítica que exige uma abertura das olimpíadas mais política, menos festiva, que dessacralizasse a idealização da formação do Brasil. 

As contradições foram muitas: o tom ecológico (uma desfaçatez diante do fato de que não se foi capaz nem de despoluir a baía de Guanabara); os negros em cima dos navios negreiros estilizados, acompanhado da troca de "escravidão" por "força de trabalho" (o que me fez perceber com estupor que a "narrativa" eleita sobre a abertura era a das narrações da Globo, que deveriam ser vistas apenas como uma dentre as tantas narrativas possíveis e, provavelmente, a mais irrelevante); as passadas largas e estilizadas de Gisele Bündchen sob o som de Tom Jobim (mas quando, no ensaio, ela era interpelada por um menino de rua, levantaram-se de imediato a denunciarem preconceito, impondo assim apenas as suas passadas); Anitta no meio de Caetano e Gil (e me vieram pelo menos meia dúzia de cantoras "duvidosas" que já estiveram ao lado dos dois).
 
Todas essas críticas podem ser justas e não descarto a sua necessidade. O que me impede de ver nelas uma via possível de crítica para pensar a cena cultural brasileira é o fato de que não me parece dizer respeito à proposta da abertura. É certo que a estereotipia é como uma espécie de recalcado, mas me parece inegável que havia ali o desejo de fuga da estereotipia tão marcada na festa de encerramento da carnavalesca Rosa Magalhães - do qual a crítica feroz aparentemente silenciou. E viva Carmem Miranda e suas bananas! Viva a força do direto, sobre o qual não é preciso nem mesmo falar.

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De Barthes: "Colocada no cerne da problemática literária, que não começa sem ela, a escritura é [...] essencialmente a moral da forma, é a escolha do domínio [em francês: l'aire] social no seio do qual o escritor decide situar-se na Natureza de sua linguagem."