sábado, 31 de dezembro de 2016

retrospectiva [quase] sem querer



eu sempre levo a câmera para os dias de sossego [estou mais a fim de sossego nos últimos tempos do que propriamente de férias]. alguns hiatos porque ninguém é de ferro e eu tenho estado muito cansada de tudo. quer dizer, não de tudo. e  mais do que me faz falta. eu sinto saudades::: saudades de mim, da leveza que me guiava. sempre levo a câmera, mas sempre tiro menos fotos do que penso que vou tirar.agora, não foi diferente. agora que cheguei de nove dias de sossego.

o ano foi difícil e isso todos sabemos. quer dizer, eu quero crer que quem eu conheço e passa por aqui vez ou outra são daquelas pessoas que sofreram com tudo que se passou no Brasil. para mim, foi devastador. e continua sendo. por vários meses, fui mais espectadora dos acontecimentos do que propriamente autora de minha vida. tive que me conectar outra vez para acompanhar a política brasileira. preferi sempre os "ao vivo". mas fiz questão de me manter bem longe da rede Globo, como faço há mais tempo do que consigo me lembrar. e as poucas vezes que topou de bater meu olho, foi aquele assombro. um enojamento sem tamanho.

mentira. ou quase. eu assisti a Velho Chico. quase toda. minha amiga Lilian me levou a essa novela. e ela tem tanto fascínio por novelas que eu, por fim, me rendi. e achei toda bonita. toda toda. não acreditava que a novela não tivesse a audiência esperada. como pode? tanta belezura! mas, claro, faltavam as gritarias, os nus, as longas sequências nas camas; tudo que hoje é a tônica das novelas, pelo pouco que consigo ver aqui e acolá.

daí que chorei quando Montagner morreu. chorei demais neste ano. chorei por Dilma. chorei em todas as etapas do golpe. e muito. e sempre. choro de revolta e de ódio. desacreditei de vez das instituições. cartas de baralho desmonumentalizadas. e desacreditei de muita gente. infelizmente. e senti que era hora de desacelerar. de parar com a obsessão do trabalho. e consegui muito.  

daí, uma retrospectiva é impossível, mas é sempre tentador puxar os fios.

Poeminha continua crescendo. e continua lindo. agora, grita bem mais. e nos últimos dois meses, tenho descuidado das nossas leituras. ele descobriu outras belezas, à minha revelia. mas de certa forma, com minha anuência. continua apaixonado por bonecas e bonecos. e é um grande inventor de histórias e de cenários. perdeu parte da delicadeza para agregar teimosia e impaciência. eu também fiz algumas bobagens, porque perdi parte da minha paz. como já disse, espectadora. mas nunca perdemos a delicadeza dos muitos gestos ao longo das horas dos dias. o que meu filho mais ouve de mim ainda é "que sorte, que sorte, você existir". ou a minha pergunta mais que retórica: "quem você é?", cuja resposta vem fácil: "seu amor e seu filho". sim, meu amor e meu filho. a maternidade me é leve. e é ainda o que de mais bonito tenho.  o que eu e Tatupai temos.

neste ano que Tatupai voltou, foram tantos os momentos bonitos. ainda há muitos silêncios. e muitos ditos. e a ser dito. mas eu me peguei muitas vezes com o mesmo pensamento de quando tudo era bonito::: eu gosto de estar casada. de ter uma casa. de ter uma família. de estar com ele. de estar-em-dois.

de novo, foi um ano de poucas leituras. e isso definitivamente, é o que eu tentarei mudar neste ano que já vem aí. e de pouca escrita. tanto aqui quanto em outros lugares. e no entanto, lembro dos dias bonitos em que estive próxima da escrita Laura Erber::: Esquilos. e de tudo que ela me indicou. são sempre bonitos os dias de escrita. e das leituras que a escrita exige. houve também outros escritos. os projetos "vagalumes". e os inícios. e os desejos. e as aulas. se eu tivesse que falar de um livro apenas, eu escreveria o título: De A a X, de John Berger, porque dentre tantas, encontro esta frase:


Não pode haver erro maior do que acreditar que uma ausência é uma inexistência. A diferença entre as duas  é uma questão de cronometragem. (Sobre a qual eles não podem fazer nada.) A inexistência vem antes, e a ausência, depois. às vezes, é fácil confundir as duas; por isso, algumas de nossas dores.

e neste ano, teimei muito comigo mesma de uma teima bonita. foram muitas as tentativas de destituir-me do descuido comigo mesma::: entregar-me às massagens e descobrir que isso realmente é bom. ter alguém com nome para cuidar de mim; foi isso que encontrei no ano passado e que cultivei ao longo de todo esse ano, mesmo quando tive que deixar as massagens por falta de grana. e houve outras tantas tentativas: pilates, caminhadas, corridas, bicicleta.descobri uma doença no meio disso tudo. encontrei o nome da doença. e guardei apenas uma frase do médico: "no dia que você caminhar, você não sentirá dor; no dia que você não caminhar, sentirá dor". heranças. uma família quase toda com essas doenças de ossos. mas resolvi tomar emprestada uma frase do meu tio Tontonho para ver se emprenho em mim a frase do médico e me reinvento de vez ::: "eu morrerei com esta doença, e não desta doença". pois. quanto ainda há a ser feito, quando tem que ser feito. 

e houve a viagem. e houve o encontro ainda a se concretizar com o MST. e houve a outra viagem. e houve o projeto "Respeite minha história"; quase no fim do ano. por isso, puxar os fios é tão tentador.
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imagem: nas ruas de Sampa, eu fotógrafa.


terça-feira, 6 de dezembro de 2016

Respeite minha história - o projeto

O projeto "Respeite minha história" surgiu após um momento de muita decepção institucional. mas eu não deveria começar assim. --- de novo::: o projeto "Respeite minha história" surgiu a partir das tantas conversas de todos os dias que eu e Lilian travamos. costumo dizer que Lílian tem dez ideias a cada segundo. e assim como vêm, vão. mas algumas viram corpo, gestos, formas e alegrias. tem sido assim o "Respeite".

o "Respeite" é sobre gente. não as gentes que utilizam uma frase como esta de maneira soberba, como forma de espetacularização e para silenciar qualquer contestação ao presente da própria história. é sobre gente que, apesar de uma suposta evidência, ainda é pouco percebida como sujeito que é um - único em suas vivências.

a nossa ideia partiu desta inquietação --- aproximar-se das pessoas. ouvi-las. criar uma ponte mínima para saber quem são elas, o que pensam, o que desejam. não queríamos pensar nelas como um coletivo que decide vivenciar uma ideia que, como vimos no desenrolar dos dias, expunha-os de uma maneira violenta e complexa. por isso, não é uma narrativa, dentre tantas possíveis, sobre os dias da ocupação dos estudantes na UFSB. é sobre as pessoas que estão na ocupação.

e quantos afetos já nos deslocaram desde então --- chegar perto do outro é perigoso. muito. sentir o outro, a dor do outro, a alegria do outro, a vida do outro, é um revirar. choramos, rimos, ficamos nervosas, ansiosas. e desorganizamos nossos dias, nossas concepções, nossas certezas. e por outro lado, não queríamos "fichar" nada, marcar identidades, afirmar o "isto" de cada pessoa. é por isso que os textos que os apresentam têm um quê  maneirista. são uma interpretação, uma leitura sobre a escuta que não quer, de fato, demarcar uma leitura, pois afirmar o "é isto" nos parece uma dessingularização, uma forma de percorrer um ideal, no caso, de jovens que têm coragem, determinação, força, para estarem ali na ocupação. sim, eles são tudo isso. mas são muitos outros. e o são agora. podem não ser amanhã. ou nem mesmo serem hoje o que pensam e dizem que são. e esta aí a beleza.
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há muitas formas de nos salvarmos. Poeminha me salva todos os dias de mim mesma.  também me salvam os gostos, o amor, os afetos. "Respeite" me salvou muitas vezes no último mês. no espaço mais árido, de maior tristeza e desgosto que é hoje o meu trabalho, encontrei nestas histórias momentos lindos de respiro. estas pessoas têm me feito, por horas a fios, me ouvir. não o que sou hoje. mas o que, hoje, penso ter sido na época da minha graduação. não é identificação propriamente dita. mais de vinte anos me separam da maioria das pessoas que deram o depoimento. então, estou diante do "outro". não sou eu. não são o que eu fui. são outros. são a diferença. e para encontrar essa diferença, naquilo que me deixa mais próxima deles, é que lembro de mim. eram tempos outros também. 
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se eu fosse contar minha história, talvez eu começasse deste jeito:


comecei a graduação oprimida pela minha própria história. era casada. e era infeliz. muito infeliz. tive a sorte de encontrar Marinalva, que me salvou deste lugar. havia em mim uma insegurança visceral. eu não acreditava em nada. em nenhuma das minhas potências. só me sabia leitora. e depois, eu já me fiz solteira. e muito feliz. escondi parte da insegurança numa arrogância, às vezes burra, outras, muito certeira. aprendi a brigar pelas minhas crenças - e nunca mais deixei de brigar. encontrei um novo amor. que depois deixou de ser amor, mas durou o tempo suficiente para me curar de um tanto de feridas. foi ali na graduação que projetei minha profissão, da qual não desisti nem quando já havia adquirido uma outra profissão estável. foi tudo ali, parece-me agora. o porvir começou ali. 

foi também ali que comecei a discursivizar minha história. foi ali que comecei a me dizer nordestina, cearense, filha de pai carroceiro, mãe professora brava e difícil, mas inteira em mim. foi ali. penso que foi. mas raramente, penso, minha história serve para enaltecer o que hoje sou. doutora - que não pode aplicar injeção, como disse meu padrinho, uma das minhas tantas histórias que me constituem. doutora em uma inutilidade chamada literatura. 

eu saco da cartola minha história, na maioria das vezes, para uma espécie de justificativa do injustificável. justifico meus piores defeitos ou, pelo menos, os que me dão mais trabalho. justifico meu "olho maior do que a barriga" sacando um "eu já passei fome". justifico minhas gastanças com um "eu já fui seis meses para a escola com um sapato furado no dedão do pé". nem eu mesma levo totalmente a sério essas associações que, no entanto, me constituem através dos meus dizeres. só quando digo que meu pai foi a vida inteiro carroceiro é que imponho uma certa gravidade. quando comecei a dizer, eu queria expor, de forma premeditada, o que, na época, eu pensava que, de maneira hipócrita, muitos queriam esconder, que era uma vida de pobreza. isso rolava muito em Porto Velho, uma cidade constituída por pessoas que vinham de fora. em sua maioria, fugindo da pobreza do Nordeste. Em Porto Velho, todos viravam filho de fazendeiros --- eu mesma, filha de herdeiro de grandes partes de terras que, no entanto, não valiam nada e de lá nada brotava. foi nesse contexto que eu virei filha de carroceiro. agradava-me chocar as pessoas quando eu dizia em tom quase natural. os engravatados todos do Tribunal de Justiça, onde eu trabalhava, já com um salário mais alto do que boa parte de minha família até então, não sabiam nem como agir de tão nervosos que ficavam. até hoje, percebo constrangimento. um não saber como olhar no olho. e eu gargalho, mistifico, relativizo. mas reafirmo. sim, nordestina. sim, cangaceira, boa de briga. sim, terna às vezes, como meu pai um dia foi. sim, sinceridade à prova de qualquer amizade. sim, teimosa. sim, egoísta. sim, terra seca e árida. e úmida, como nos dias raros de inverno. eu, letra minúscula.

estou assim -- grávida de histórias. todas elas batendo em mim, ora como chicote, ora como vento. 

Merci, merci, a todos!