domingo, 24 de dezembro de 2017

minha biblioteca












penso que jamais terei uma biblioteca de encher os olhos. isso ---- no que diz respeito aos móveis. estou condenada a estas estantes feitas quando eu não tinha um tostão no bolso e precisava de todo modo de prateleiras para abrigar os livros que se avolumavam. sempre que imagino estantes até o teto, feitas sob medida, eu lembro em seguida que não sou uma pessoa de posses. nem suficientemente madura para fazer planos a longo prazo --- economizar, pagar a vista depois de meses de organização financeira, me é algo tão estranho que sequer cogito. sim, estantes de quinze anos atrás que abrigam os livros de antes e os de agora, como que por milagre. sempre há um jeito de caber um pouco mais. inclusive, há o jeito de aceitar como abrigo caixotes coloridos de supermercado, acompanhando a tendência do decor-faça-você-mesmo, que é só uma forma de glamourizar a pobreza.

nesse pouco mais, está a minha história. uma vida inteira. como toda pessoa que compra livros --- e já disse isto outras vezes aqui ---, compro mais livros do que dou conta de lê-los. é tanto um espanto como um acalanto a cada vez que mudo de casa e tenho que fazer com que eles caibam nesses espaços. os livros são a materialidade, a prova, dos meus excessos. não há nenhuma época da minha vida que não esteja contaminada pelos livros --- pelo que li e deixei de ler. assim como as razões pelas quais li e as por que não li.

e mesmo sem memória, consigo identificar a história de cada livro. e o que havia ali de promessa. não a história do livro, mas a que está por trás de sua compra. e do seu desejo - realizado ou não - de leitura. continuo agrupando-os por gêneros e nacionalidades, começando pela prosa brasileira e finalizando com a poesia. a razão por que não estão juntas prosa e poesia brasileiras diz muito sobre a leitora que sou::: antes de tudo, uma leitora de romances.  eu sei que há toda esta bobagem de antagonizar a prosa e a poesia, mas não é por essa razão que sou uma leitora de romances::: meu amor pelos romances vem da infância; é aquela menina que tomava emprestado livros de capa grossa da biblioteca da escola que aprendeu a amar histórias grandes. aquela menina ainda existe nessa resistência do amor aos romances, é o que gosto de pensar. não há memória da infância que não seja também contaminada pela leitura. tanto as boas, poucas, como as ruins, muitas, falam do meu amor precoce pelas palavras escritas. o saber ler aos cinco anos. as palavras escritas nas paredes de tijolo. a mãe professora. a ida à escola. a primeira professora. a minha alegria e o sofrimento do meu irmão na mesma escola por anos seguidos. a descoberta da biblioteca. a surra por causa da leitura, ainda criança, de romances de amor  --- tudo é ferro marcado no corpo.

a poesia é, talvez para sempre, um desejo continuamente adiado, embora nunca me falte um estar-junto de alguns poucos poetas.

nesta última mudança, limpei os livros um por um. foram dias e dias de uma conversa imaginária com tudo aquilo que me rodeia. todos os dias sou rodeada pelos livros::: porque eu gosto de trabalhar no meu escritório. é aqui que suporto bem o preenchimento dos formulários. é também aqui que planejo as aulas. e aqui tenho as melhores ideias no enfrentamento da escrita. não existem dias mais felizes do que aqueles em que resolvo escrever algum texto. por conta dessa felicidade, sei que deveria enfrentar, mais uma vez, uma escrita mais longa. já faz dez anos que escrevi o meu mais longo texto, que foi a minha tese. como eu já disse tantas vezes, percebo nesta um sem-fim de buracos, mas lembro, sobretudo, do amor que havia na ponta dos meus dedos enquanto a escrevia. há muito amor e muito adeus em minha tese. sem dúvida, eu deveria experimentar novamente tamanha entrega.

neste ano, enfrentei a leitura porque não havia muito o que fazer. atravessei o luto com a leitura de livros nas longas noites insones. e por isso, nesse ano, aprendi a amar, sobretudo, Javier Marías, José Luis Peixoto e John Berger. nunca se sabe ao certo se é assim mesmo. o que poderia ser feito e o que não se pode fazer porque é além da capacidade. decidir nada dizer sobre a prostração o medo a dor a tristeza a letargia a não ser também pela escrita --- para que não sejam lamúrias, para que sejam o que apenas são. se poderia ser de outro jeito, não sei, porque foi o modo que encontrei. de alguma maneira, poder conversar com o meu irmão - e com a morte do meu irmão - através dessas longas noites.

os livros nos impõem o enfrentamento do sofrimento e também da própria vida. não me surpreende que, por estes dias, eu esteja às voltas com Thomas Bernhard, um autor que meu amigo Alberto me ensinou a amar há muito tempo, mas que eu havia esquecido até que minha amiga Aline me lembrou que esse amor é uma das minhas estranhezas. ainda hoje penso no Alberto quando leio Bernhard. aquela elegância trágica está também nele. é difícil ler Bernhard e depois me religar com o entorno. há muita dor e muita mágoa espraiadas em cada linha. como levantar a cabeça e enfrentar o mundo? é difícil. nas páginas finais de Origem, Bernhard relata como a leitura de Os demônios, de Dostoiévski, deixou-o incapacitado por muito tempo para outras leituras, tamanho o impacto. é também assim que me sinto::: há escritores que estragaram para sempre meus gostos literários, porque me fazem buscar em cada um aquela mesma sensação em uma meia dúzia de escritores que me atormentam.

talvez seja por isso que eu compro livros de escritores que nunca li ---

--- mas eu li a quadrilogia de Elena Ferrante e digo, sem temor, que ela é uma grande narradora. foi por conta do meu desgosto com os brasileiros contemporâneos que desandei a ler, novamente, os estrangeiros. dessa vez, não mais os russos ou os franceses. sim, foi neste ano que perdi o pudor de dizer  o quanto o romance brasileiro contemporâneo que eu leio está tão pouco impregnado de invenção. ainda encontro algo de distinto em alguns escritores, mas não naqueles que havia aprendido a amar. Joca Reiners Terron ainda e continuamente me surpreende. e nenhum outro nome me vem à mente. parece-me que os outros estão sentados acomodados em suas vitrines mercadológicas --- e são os que ganham os prêmios. para meu espanto e meu desgosto.

porque há isso em toda biblioteca. os grandes amores. as paixões passageiras. os planos de estudo. as decepções. os livros que serão relidos mais de uma vez. os que jamais serão lidos. os que não deveriam ter sido comprados. os que deveriam mesmo que não sejam lidos. os que serão lidos ainda este ano. os que estão numa lista extensa de leitura. os que foram lidos há muito tempo e é como se tivessem sido ontem. os que foram lidos e não resta uma linha, mas que ficaram para sempre cravados em mim. os livros que aterrorizam porque foram lidos. os que atormentam porque não foram. 

e o inclassificável. o imponderável. o que não tem fim. o que é uma herança.
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existem os livros. 


** para Aline, que me pediu. com amor. para que eu não esqueça. e ela saiba.


sexta-feira, 10 de novembro de 2017

Adriane Hernandez - o reencontro


Adriane foi embora num fim de dia chuvoso e triste = azul quase cinza. Eu triste pra cacete. As coisas acontecendo e eu já sentindo a sua falta. A chuva é fria em Paris. Eu, ela e Mari correndo na chuva sentimos isso. Sem abrigo por perto. Subimos na torre Eiffel horas antes de ela partir. Dri tem medo de altura. Suas pinturas são azuis. Seus objetos também. O pão é "amarelo queimado" como todo pão. E branco por dentro. Por duas vezes, vi-os pela tela: ela a me dizer. Prateleiras com mãos humanas entre pães = as mãos da sua mãe. Massa de pão parecendo nuvem carregada de água "mas tem peso". Telas (gigantes, ela me diz) de banheiros meio disformes = o azul se apossando dela como imperativo. E não deve ser difícil uma arte do azul? Picasso, na sua fase azul, é de uma tristeza de escorrer lágrima. O quadro do Soutine que mais me abisma é azul e "amarelo queimado" no centro. Le poulet plumé. O azul da Dri é delicado. Não me parece de dor, a não ser aqui e ali. É uma memória do azul = associações que nos leva a outros objetos, outros tempos. A toalha da mesa que não pode ser separada do pão = a vida nos pequenos gestos [comer pão na mesa preparada para o café da manhã]. Quando vivi isso mesmo? É aí que habita a dor da obra da Dri. Em quem olha. Vestígios do que não se tem ou se viveu ou se perdeu ou se guardou. Indícios, ela me diz. E tem o corpo, isto que sente. Dri embrulhada em papel de pão. O corpo amarelo, como todo corpo, dentro do papel de pão. A sensualidade do pão, o horizonte no pão, o pão onde não se imagina. Este inesperado da delicadeza das pequenas coisas é o que mais me encanta na Dri artista, amiga, pessoa, gente, mulher. Azul e branco sobre azul e branco nas mãos de luva. A mão amarela escondida pela luva azul e branco em cima da toalha de mesa azul e branco. Quadrados. Migalhas. Momentos tomando conta. Me vêm agora estes lampejos, estas frases sem sentido. Sou um azul de saudade num dia branco nesta cidade cinza.



eu não encontrava Adriane desde esse dia triste e chuvoso em Paris. nestes anos todos, guardei-a em mim --- uma Dri que eu amei em Paris. reencontrei-a no fim de semana passado em sua Porto Alegre. e constatei com alegria e emoção que havia guardado muito dela dentro de mim. eu, desmemoriada, guardei em mim suas frases inclassificáveis. seriam agridoces, se não fosse sua voz delicada a proferi-las. uma mistura de zombaria e cuidado que imprime um saber que gruda. foi assim que Dri me levou pela mão em muitos lugares de Paris. como artista, como estudiosa das Artes, como ser que sabe o valor do silêncio, Dri sempre me emocionou.

Dri é lenta. não é a minha lentidão, que, de fato, é uma incapacidade de ser prática. Sua lentidão é um modo de estar no mundo. e cuidar de seu tempo com o peso e a beleza que a vida pede. Dri gargalhou quando me viu. gargalhava e me olhava com seu olhar inteiro. gargalhamos juntas. nunca havia acontecido algo assim comigo::: gargalhar pelo encontro - abraçar abraçar e gargalhar gargalhar. nunca vou esquecer. mais um gesto que ela me imprime.

conversamos tanto tanto tanto. e agora, ainda acho que foi pouco. dormimos sempre depois das 3h da manhã. mesmo quando falamos de nossas dores, de nossos tantos impasses institucionais, me senti na presença da delicadeza. já no avião, de volta para casa, me deu vontade grande de chorar. e chorei --- me veio o pensamento de não ter me enganado durante todos esses anos. A Dri que eu havia conhecido não era apenas uma figura de meu imaginário. ela é o que eu havia imaginado todos esses anos. ir nos seus lugares em Porto Alegre, conhecer alguns de seus alunos bonitos, estar no ateliê que ela dá aula, ver a exposição da qual ela é a curadora, assistir ao espetáculo de Chico, seu namorado, e ter a certeza de que me apaixonaria também por ele, tal como sou apaixonada por ela; bebermos muitas cervejas artesanais juntas, irmos ao MARGS e ela soltar meia dúzia daquelas frases inclassificáveis; provocá-la para me mostrar seus livros favoritos na sua biblioteca (e ela aceitar o desafio e me dizer por muito tempo o que faz com cada texto que apresenta aos estudantes) --- tudo isso me deixou viva e feliz. 
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também vi a nova fase de seu trabalho --- isso de ver e ouvir::: Dri ali, me explicando cada traço. a ideia de camadas, do aleatório, da construção de uma linguagem - o azul o azul o azul. passarinhos. verde. uma cor de assalto. visão e invenção. --- todas as noites deviam ser tão belas como esta.

hoje, reli parte de Palomar, de Italo Calvino, um dos livros sobre o qual ela me falou apaixonadamente. e me senti de novo em sua presença. e de novo, fiquei feliz --- prometo que não passarão mais dez anos para nos reencontrarmos. qualquer dia volto com Poeminha pela mão. para que ele conheça a sua delicadeza. e seu olhar que pergunta. e responde.          

sábado, 14 de outubro de 2017

mano --- tão bonito



Mano está à direita, blusa preta, de boné. com o prato na mão, comilão, que nem eu.

nesta semana, tia Fá postou uma lembrança de um daqueles almoços na casa dela, sempre festivos, sempre felizes. eu sinto falta. eu sempre fui uma pessoa nem sempre presente. ou quase nunca presente. mas sempre muito acolhida. eu chego nestes almoços e é como se estivesse ali todos os dias. eu sinto assim e sinto que as pessoas me sentem assim também. meu irmão era de outra ordem. meu irmão se fazia presente. aparecia pela necessidade de aparecer. ele devia sentir saudade --- o que eu sinto apenas agora. 

pois foi isso que senti de forma ainda mais tangível ao ver as fotos que tia Fá postou. meu irmão estava lá em um daqueles almoços. era 2015 e meu irmão ainda estava lá. meu irmão e seu sorriso banguela porque ele não estava muito disposto a cuidar do seu sorriso banguela, embora Maneca sempre dissesse que pagaria para que ele --- meu irmão era miolo mole. e nisso, somos muito parecidos. 

eu me espanto e me enterneço ao ver - e pressentir e relembrar - o jeito terno do meu irmão. ele era terno. um terno envergonhado, como se a vida toda devesse ter feito dele o contrário da ternura e não tivesse conseguido. meu irmão era do sertão. meu irmão era pobre de marré. meu irmão ia pra mata porque sabia que não era bicho da cidade. e meu irmão tinha amores grandes dentro de seu peito. 

não sei se é por isso, mas todos os dias eu penso que a vida ficou mais feia, mais triste, porque meu irmão não vive mais. já experimentei de tudo::: xinguei-o por dias seguidos porque ele entrou naquele poço; rememorei tudo que vivemos juntos e amaldiçoei o que esqueci; filosofei sobre a finitude da vida, sobre o luto, sobre a perda, sobre o que fica depois da morte. mas tem dias, como este em que vi as fotos das lembranças de tia Fá, que nada adianta. 

eu quero meu irmão vivo --- é fato. um fato nunca mais possível. quero meu irmão vivo para poder não sentir saudade. #agorapronto, diria ele. e se levantaria dando por fim a conversa. agora pronto --- me vem o medo de morrer. uma certeza de que nós, da geração 70, estamos destinados a. meu irmão não levaria a sério esse meu medo. meu irmão gostava de mim e adorava nossas parecenças. 

 é difícil viver sem meu irmão. me dá ânsias de novas vidas --- fico querendo novas vidas. já não quero mais os velhos problemas. nem os sentimentos viciados e acomodados. por ora, domestico essas ânsias. e fico nessa labuta. mas aqui dentro tudo me contorce. sigo os dias. e acho que porque estou inteira dentro. em outubro do ano passado, eu havia decidido tanto. aí, janeiro chegou e o ano todo se vestiu de luto. estou assim. ainda. e não estou com pressa. mas outubro chegou novamente. não me veio nenhuma nova alegria. apenas a lembrança do outubro passado.  em outubro e novembro, parece que todos nós renascemos: minha mãe, Ferdin, eu, ManaMácia, Maneca. agora, tem sido difícil o renascimento. o Mano parou de renascer. mas eu sinto --- como hoje ao falar mais de hora com manaMácia --- que estamos no caminho de reaprender. e vamos nos encontrar e chorar e sorrir e falar e amar. em breve. e Mano não estará. mas estará. porque eu descobri agora o que é isto de alguém estar para sempre em mim --- é um músculo. mano está em mim, no meu coração --- é um músculo que pulsa, inseparável de meu corpo, de meu pensamento, de minha vida. 

e não é só ele. meu pai. minha mãe. manaMácia, Maneca, Morg, Ferdin. estão em mim. meu filho está em mim --- mais e mais. e tantas outras gentes - não tantas, mas minhas - estão em mim. meu irmão não precisava ter morrido para eu descobrir isso. eu já sabia. latente, sabia. mas o fato de ele ter morrido torna essa constatação tão mais dolorida, tão mais grande, tão mais triste, tão mais difícil de ser vivida. 
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terça-feira, 3 de outubro de 2017

A renúncia e o porvir




Na última sexta-feira, o reitor da UFSB renunciou ao cargo. Aproveitando o último ponto de pauta do Conselho Universitário, anunciou seu pedido de exoneração, enviado ao MEC nove dias antes do anúncio à UFSB. Finalizou dizendo que o pedido de renúncia era uma decisão unilateral, sobre o qual não cabia discussão, não sendo, portanto, ponto de pauta. A reunião foi assim encerrada. Esse é o fato.


Entretanto, para tentarmos entender o gesto do reitor, é preciso não nos afastarmos do momento vital da UFSB, que diz respeito a todos/as nós, docentes, técnicos/as e estudantes. É o término do 1º ciclo e ingresso no 2º ciclo, em que estudantes deverão escolher em qual curso continuarão a sua formação. É também o início do calendário do processo de consulta acadêmica para reitoria aprovado há poucos dias pelo Consuni.


Relembrar é sempre bom::: processo iniciado há mais de ano, nos moldes sugeridos pela gestão, com eleição, primeiro, para IHACs e Centros de formação. Em síntese, nenhuma anormalidade no processo que pudesse indicar o gesto do reitor. Entretanto, tanto na sua renúncia feita no Consuni quanto na carta disponível em sua página no Facebook, ele acusa grupos de articularem um golpe e de promoverem um processo ilegítimo. A partir daí, só nos resta perguntar: como pode haver golpe, se não houve um só movimento de pedido de renúncia do reitor feito por quaisquer categorias da UFSB? Nenhuma pressão para ele colocar seu cargo à disposição? Não houve paralisações, não houve petições públicas, não houve publicação de vídeos, não houve textos; nada, absolutamente nada que sequer insinuasse um movimento coletivo de destituição do reitor. Assim, tal afirmação de golpe ofende a nossa inteligência e, sobretudo, nossa autonomia de comunidade acadêmica. Aceitar tal discurso é aceitar sermos submetidos a violências discursivas de todo tipo. Por isso, devemos resistir.


Na primeira vez que ouvi o agora ex-reitor da UFSB, ele já proferia um discurso de intimidação e de acusação, no qual tentava silenciar as primeiras vozes discordantes de suas práticas. Uma de suas falas emblemáticas foi: “Não cabe a ideia de autonomia docente no modelo da UFSB”. E aí está toda a questão: a crença de que o projeto da UFSB é seu e a ele cabem todas as diretrizes. Já faz quase três anos desde esse primeiro discurso, ocorrido no campus Jorge Amado, e nada mudou. O personalismo sempre se configurou como a sua marca, tendo o reitor tomado para si todas as benesses de implantação de um modelo distinto de outras Universidades, a ponto de apresentá-lo como o mais revolucionário modelo que o Brasil jamais conheceu. 


Não deixa de ser uma bela história, em um país tão desprovido de utopias. Quem não quer acreditar em uma universidade revolucionária nos rincões do Brasil? Uma universidade popular cujo objetivo seja oferecer cursos de qualidade para a população mais à margem das grandes oportunidades? Quem não quer acreditar em uma universidade em que não seria preciso escolher de pronto o curso a definir a sua futura profissão? Porém, o que sonham a maioria dos/as jovens do interior do país? O que deseja a comunidade acadêmica, que somos nós, e não apenas uma única pessoa? Não nos foi perguntado. E aí está o grande impasse do projeto personalista.


Foi esta a resposta que nunca foi dada: como lidar com os sonhos dos que querem, prioritariamente, cursar Medicina ou Direito. Ao contrário, para incentivar o maior número possível de entradas na Universidade, disseminou-se a crença de que haveria vagas para todos/as. Estávamos, portanto, diante de um problema administrativo que foi transformado em um problema político unicamente pelo gesto do reitor.  


Pois o que faz o reitor ao se ver diante da obrigação de prestar contas acerca de seu maior “cabo eleitoral”; o que lhe rendeu popularidade entre estudantes, políticos e pesquisadores locais e nacionais, que lhe permitiu dar inúmeras palestras propagando mundo afora que estava criando uma universidade inovadora? Simplesmente, pediu exoneração, sabendo que deixava um problema insolúvel para a atual vice-reitora. Pois se há solução para as vagas de medicinas existentes versus a quantidade de estudantes que cursaram o 1º ciclo com o intuito de cursar medicina, a gestão do reitor Naomar foi incapaz de apresentá-la. Em vez disso, preferiu criar, como em outros momentos de crise, um discurso no qual culpa outros agentes pelo seu retumbante fracasso. 

Devido ao que me ficou claro desde aquele primeiro discurso de intimidação, jamais pensei que diria isso, mas agora digo: era obrigação moral do reitor ter ficado neste momento de crise; ter ficado e resolvido os inúmeros problemas criados pela sua má gestão. Se não teve grandeza para tal, deveria furtar-se de criar um “circo” de factoides, que certamente não está à altura do projeto que ajudou a idealizar. Apontei em tantos lugares, sobretudo diante do reitor, inúmeras práticas que não condiziam com a sua retórica de renovação e desburocratização, sendo próprias de gestões públicas corrompidas: concentração de poder, distribuição indiscriminada de cargos a pessoas sem competência, centralização de recursos, falta de planejamento etc.. Não era a única. O que presenciamos, nos últimos três anos, foi paralisia, inércia e descaso com nossas reivindicações acerca de questões cruciais da Universidade. Apesar de sermos submetidos a um modelo arcaico e perverso de inúmeras reuniões semanais, não se desenvolveu na UFSB nenhum modelo de escuta. Menos ainda de deliberações a partir dessas escutas. 


Basta ver o organograma institucional da UFSB. Na suposta universidade democrática, em que tudo deveria ser discutido coletivamente, há um único órgão deliberativo, que é o Conselho Universitário, até há poucos meses constituído unicamente por membros indicados.  Ao contrário de outras universidades, sob a desculpa de desburocratização, aqui há um esvaziamento de todas as instâncias, numa concentração de poderes espantosa e desonrosa para uma Universidade pública. Nos três campi, congregações e colegiados de cursos não são deliberativos. Todas as decisões precisam ser referendadas pelo Conselho Universitário, cujo poder é ilimitado, uma vez que não existe nenhum outro Conselho intermediário. Tirem daí suas conclusões. 


Também nessa concentração de poderes, a pró-reitoria de gestão acadêmica acumula inúmeras competências funcionais a ponto de se tornar inoperante. É ali que melhor se observa o quanto uma gestão controlada por uma única pessoa pode ser nefasta. A cada mínima discordância, pró-reitores foram sendo afastados no decorrer destes três anos até ser nomeado um sem experiência alguma em gestão pública, mais propício, portanto, a submeter-se a todas as vontades da reitoria. Desse modo, dali não pôde sair nenhuma decisão que resolvesse os inúmeros problemas administrativos da UFSB. Agora, o ex-reitor tenta pôr a culpa na vice-reitoria e na pró-reitoria de administração pelos problemas, quando todos/as que aqui estamos sabemos o quanto as suas formas de controle restringiam as ações. 


Deveria ter um reitor a magnitude exigida pelo seu cargo. Deveria resolver os problemas administrativos da universidade, e não se eximir de tal trabalho, afirmando ser responsável apenas pela concepção das ideias. Nenhuma concepção de educação se constitui sem ser posta à prova nas práticas educacionais. Perguntem a qualquer professor sobre tal relação e será fácil perceber que o contrário não passa de falácias. Ainda e sempre vale o que disse o velho Marx: “De resto, ideias nada podem realizar. Para a realização das ideias são necessários homens que ponham em jogo uma força prática”.  

Não há, portanto, o que temer quanto ao porvir da Universidade. O que há de qualidade na UFSB advém das práticas dos professores/as, técnicos/as e estudantes que trabalham à revelia dos inúmeros desmandos da administração. Nas avaliações do MEC já ocorridas para reconhecimento dos cursos, está dito textualmente: é admirável o intenso trabalho de professores diante da precariedade da universidade: não há bibliotecas, não há laboratórios, não há salas de aula suficientes, porém funcionam Complexos integrados, Colégios Universitários, cursos de pós-graduação e um número elevado de projetos de pesquisa e extensão em parcerias com as comunidades. 


Então, é possível que a renúncia do ex-reitor inaugure o tempo em que o projeto desta Universidade não corre perigo. Não me parecia haver porvir até sexta-feira, pois nenhuma universidade deveria estar à mercê de uma vontade soberana.  É agora que tudo deve começar. Recomeçar. Aqui ninguém quer retirar o que de direito e de distinto já conseguimos fazer existir. O projeto da UFSB é de todos/as nós. Não pertence a uma única pessoa. Um rosto que se diz único, origem e fim de todas as coisas, não pode ser mais do que uma desfiguração da própria ideia de sujeito. 


O momento atual exige de nós um pensamento forte. É a hora e a vez – para pensar em Guimarães Rosa – de pôr à prova as instâncias críticas de pensamento que foram fomentadas desde a Formação geral.  Não é preciso muito. Basta não nos deixarmos ser levados por discursos que não resistem a uma leitura atenta. Basta buscar as incoerências, as fissuras, as brechas, pois está tudo lá a demonstrar a sua fraqueza. É puxar o fio e veremos que não sobra nada. Onde não há o Outro, onde não se aceita o contraditório, a diferença, não cabem sujeitos. Então, sejamos sujeitos! A UFSB é nossa --- com todas as suas contradições e suas lutas por vir. 
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* Painel no campus Sosígenes Costa.