terça-feira, 7 de fevereiro de 2017

mano, tão cedo



meu irmão foi embora tão cedo. foi embora tão cedo meu irmão. meu irmão morreu. morreu meu irmão. não importa que ordem eu dê a essas frases, a esse acontecimento, a cada vez me parecem estar fora do lugar. quando soube, vagando entre o desespero e o inominável, eu repetia sem parar: "não morra, mano, não morra", como se eu pudesse revogar o que já havia sido. depois, fiquei com medo de que, de alguma forma, eu pudesse estar atrapalhando a sua travessia --- quem sabe no que acredita diante do horror do acontecido? e passei a dizer que ele podia ir, que ele não se importasse, se ali pudesse nos ver - quem sabe no que acredita? - porque já era só dor, já éramos apenas nós que ficávamos. nós não importávamos.

agora que meu irmão se foi, eu descubro que passei a vida toda pronta para que fosse eu a morrer primeiro. eu que passei toda minha infância condenada a morrer. e que, já adulta, adoeci repentinamente de uma doença com grande índice de mortalidade. com a qual descobri que ainda não senti o medo da própria morte. dor, sim. uma dor grande, física, terrível. mas infinitamente menor do que esta, ao saber da morte de meu irmão. essa dor que ainda me acorda no meio da noite como um prego que rasga a carne no meio da travessura de passar na ponte de tábuas tão soltas.

como aquela ponte --- da infância. feita de madeira oca. aquela que eu e meu irmão atravessamos, no momento exato em que me desequilibrei e o prego entrou na minha carne, mas não na dele. ou daquela vez, em que no meio da palha onde brincávamos de gangorra, a palha entrou na carne dele, e não na minha. ou quando brincávamos de perna de pau, ele desequilibrou e caiu dentro do tambor cortando o cílio, carregando para sempre a marca, e não eu.

minha mãe costuma dizer que os da geração de 1970 vieram para fazer tudo que as outras não fizeram. eu e ele, os da geração de 1970. na infância, isso significou desobedecer uma a uma a todas as regras que não entendíamos as razões, aproveitando-nos de todo descuido --- jogar bila no terreiro, andar de perna de pau, desviar-se do caminho de casa e da escola, aprender a nadar e vagar pelos terreiros e terrenos ao redor da morada. vem daí uma das lembranças mais ternas da minha infância::: eu e ele correndo atrás de um cavalo num grande pasto devastado, dando risadas, tentando agarrar o rabo do cavalo, não conseguindo e caindo exaustos de tanto tentar, rolando no chão. e rindo rindo rindo. sempre às escondidas, sempre à mercê das piores surras.

e na vida adulta, isso significou tantas histórias impublicáveis. tanta bebedeira, tanta farra, tanta lindeza. [dois moleques grandes cúmplices nos erros alegres]. e agora, fiquei sozinha nas doidices, minhas irmãs caretas que não bebem uma gota. 

ao contrário de mim, meu irmão era manso. sempre. na hora da surra, era preciso que eu gritasse: "corre, mano, corre". e ele não guardou mágoa alguma - aquela mesma que me corroeu durante tanto tempo e a mesma que agora eu  procuro extirpar sendo uma mãe amorosa. meu irmão era bom. tinha um coração bom. e não digo isso porque agora ele se foi. tantas e tantas vezes, foi esse seu álibi. no meio de nós, irmãs, foi sempre o diferente, o que não fez como nós, o que não se disciplinou, o que esteve sempre à deriva --- a ponto de ter se colocado ali, num poço de quinze metros de profundidade, sem grandes experiências, a não ser a de sua grande coragem. e de sua grande necessidade. um cabeça-dura. um miolo mole. e foi esse miolo mole que o fez melhor que nós. mais livre, mais solto, mais longe. e agora, como ele faz isso com ele? como vai parar na merda de um poço sem ar e morrer ali? como dói. como dói.

um disléxico --- um disléxico sem diagnóstico, quando a miséria escolar era ainda maior do que a de hoje, quando ninguém olhava para os que não aprendiam. quando o desleixo, mesmo quando o amor era tanto, impedia o saber. creio que nunca nos recuperamos daquela 3ª série, em que eu segui e ele ficou ali para sempre. ou ficou ali até o dia em que, já adulto, por fim aprendeu a ler de verdade, vencendo a dislexia (eu tão sem memória, lembro perfeitamente do dia que o vi lendo de verdade::: na casa da Maneca, sentado num sofá que parecia sofá de zona, com um livro postado em cima de uma mesinha de centro preta. naquele dia, o mundo todo passou por mim. ficamos ali naquela 3ª série - eu com minha culpa; e ele, com sua falta de jeito, vendo milhares de vezes uma professora desgraçada agarrando a mão de meu irmão e obrigando-o a escrever palavras que ele não sabia escrever. com a histeria e o despreparo imprescindíveis para marcar tão violentamente vidas para sempre. ou não. talvez apenas eu fiquei ali, e por isso como professora goste sempre dos mais desajeitados, dos mais desajustados, e não obrigue ninguém a fazer nada:: a escrever o que não pode escrever. nem a falar, nem a calar.

porque meu irmão pensava muito. como meu pai, como eu, como minhas irmãs --- um pensar infindo; ora terrível, ora sublime. dava para sentir nas suas poucas palavras, nas suas tantas histórias, que a mente fervilhava. a mente sonhava. desejava. ansiava. mano mano mano. e ele passou a vida tão curta dele atrás desse sonho. que era o oposto dos nossos. e que era a sua salvação, o seu guardião. meu irmão queria ir sempre para mais fundo da mata. tinha medo das cidades. porque nas cidades seu caminho era errático e era tão próximo do caminho do meu pai, que, ao contrário, sempre preferiu as cidades.

conta Rutinha, sua companheira neste sonho, conta minha mãe, conta Maneca, conta Dedega, seu primo-irmão de uma vida toda, que agora ele se sentia no seu sonho. para chegar nas suas terras, no seu lote ainda sequer registrado, era preciso atravessar o rio de barco. lá, ele vivia com Rutinha e seus vários cachorros. nem havia de folga o que comer e tinha esses cachorros todos. nada diz tanto sobre meu irmão quanto isso. seu miolo mole, sua falta de ambição, seu amor pelos bichos, pela terra, pela vida.

cada um que o conheceu, certamente tem sua imagem. mas creio que ninguém discorde de um ponto --- justamente o que me consola e, ao mesmo tempo, me dilacera: meu irmão era feliz, como o são apenas aqueles que amam, de fato, a vida. e vivia a vida como o sonhador que era. como quem acredita. como quem tem fé. sempre amortizava as dificuldades de sua vida em prol de um porvir que lhe seria generoso, ainda que o presente nem sempre lhe fosse. as contendas de meu irmão eram sempre poucas e acabavam do mesmo modo: "então, pronto". quando havia a mínima possibilidade de um acordo, ele vaticinava de imediato: "então, pronto", calando seu interlocutor com seu próprio silêncio. que era firmeza. que era teimosia. que era ternura. que era introspecção. meu irmão tinha a elegância de guardar seus demônios para si. e só lançá-los ao mundo quando tiravam-no muito do sério. também dizia: "agora pronto" --- que equivalia a algo como: "só faltava isso". e era quase sempre como que um pedido para que não o tirassem do sério.

meu irmão. que se foi. meu irmão, que era o filho da minha mãe. e do meu pai. que se fez filho também da minha Maneca --- um pouco como eu. nós dois, que tanto amamos Maneca. eu e minha Princesa, filha de Maneca, nos encarregamos de levar o corpo do meu irmão para nossa cidade de origem, depois que Maneca, Manamácia e os anjos que sempre aparecem nessa hora cuidaram de tudo. é o inimaginável --- esperar alguém que não está mais aqui. eu e ela --- minha desde que tinha um ano de idade. paramos na cidade onde eu e ele nascemos, como se já estivesse escrito:: Limoeiro do Norte. e foi ali que tiraram a estrutura de metal que protegia o corpo do meu irmão que veio de tão longe. e foi ali que o vi::: no meio do caminho. quando o caminho já era findo. depois, na longa noite, atravessamos as curvas que é preciso atravessar até Iracema, nossa cidade. lembrei de nós na nossa infância, quando íamos de ônibus, apenas eu e ele, para essa mesma cidade. de Tabuleiro a Iracema. era tudo tão mais simples.  não havia Estatuto da Infância e da Adolescência a nos proteger. havia apenas rostos que nos conheciam, que sabiam quem éramos --- os filhos de Chico Tavarim. os filhos que iam e vinham com sacos de comida enviados pelo meu pai. e Iracema, e as tantas pessoas que ali habitam e já ouviram falar de nós, deram ao meu irmão um velório e um enterro tão bonitos. isto::: da necessidade do ritual. o poder-lembrar depois.

Dedega - seu primo-irmão da vida toda - me disse tudo::: a travessia dos bons bocados. bons. bons. foi bonito ouvir: "atravessamos bons bocados juntos". e eu fiquei a lembrar de nós. eu lembro dele. e de tudo que eu vivi e também que não vivi com ele, mas que ele viveu com outros. com Dedega, com Rutinha, com seus tantos amigos. meu irmão era doce. meu irmão saía do sítio que agora era seu e vinha para a cidade telefonar para os seus: para mãe, para Maneca, para Dedega, para... Vinha na noite de natal, do ano novo, no seu aniversário, no aniversário de alguém. isso, de atravessar; de atravessar por quem importava, de falar com quem importava. atravessar a mata e atravessar o rio para falar com os vivos. ele mesmo::: vivo!

agora, como disse manaMácia, acordamos, e tudo havia acabado. sempre é tarde. acabou para meu irmão. e para mim, foi tão cedo que acabou. sei que para ele também. para ele --- que amava a vida, que amava viver. que amava gente. que nos amava.e eu, que tanto admiro tudo que Derrida fala sobre o luto, não encontro nada, ali, que possa me consolar. sei que a vida continua. já ouvi minha risada depois que ele se foi. mas sinto que, a partir de agora, sentirei, enquanto eu viver, esse espanto de que mano não vive mais. logo ele:::

[agora, já não veremos mais ele enrolando seus cabelos com uma das mãos. agora, ele não nos abraçará mais -- e como se o abraço fosse pouco, não nos levantará mais do chão no exato momento do abraço. e agora, não haverá mais: eh, neguinha!; eh manavéia]
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post scriptum --- escrevi para uma pessoa muito amada::: "ainda estou no limbo. dói. dói. dói. mas nessa dor, eu fico só imaginando como serei feliz quando essa dor passar: pelo meu irmão. pelo tanto que ele foi feliz na vida breve que teve". e pela vida. porque ela acaba. e por isso, penso desde sempre que só vale a pena atravessá-la se for assim, como o mano atravessava: amando intensamente a vida, amando estar vivo.

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1 Palavrinhas:

$ulin@ disse...

Poderia falar mil coisas, mas palavra alguma pode consolar tamanha dor. Porém digo, não busque as coisas que poderiam te feito juntos e sim reviva os belos momentos que passaram juntos. Sei que a dor vai passar, mas o vazio e a saudade seram eternas. O que fica além das lembranças são seus exemplos de bondade, sua sabedoria em lidar com a terra que tanto amava. Siga sua vida, fazendo como ele, vivendo, vivendo e sendo você mesma. O pouco que temos é suficiente pra sermos felizes. Estou aqui, e nem poderia deixar de está. Estou aqui e sempre estarei, para de abraçar, confortar,amparar, enfim pro que der e vier.Te amo verdadeiramente. Arev