Na última sexta-feira, o reitor da UFSB renunciou ao cargo. Aproveitando
o último ponto de pauta do Conselho Universitário, anunciou seu pedido de
exoneração, enviado ao MEC nove dias antes do anúncio à UFSB. Finalizou dizendo
que o pedido de renúncia era uma decisão unilateral, sobre o qual não cabia
discussão, não sendo, portanto, ponto de pauta. A reunião foi assim encerrada. Esse
é o fato.
Entretanto, para tentarmos entender o gesto do reitor, é preciso não nos afastarmos do momento vital da
UFSB, que diz respeito a todos/as nós, docentes, técnicos/as e estudantes. É o
término do 1º ciclo e ingresso no 2º ciclo, em que estudantes deverão
escolher em qual curso continuarão a sua formação. É também o início do calendário
do processo de consulta acadêmica para reitoria aprovado há poucos dias pelo
Consuni.
Relembrar é sempre bom::: processo iniciado há mais de ano,
nos moldes sugeridos pela gestão, com eleição, primeiro, para IHACs e Centros de formação. Em síntese, nenhuma anormalidade no processo
que pudesse indicar o gesto do reitor. Entretanto, tanto na sua renúncia feita
no Consuni quanto na carta disponível em sua página no Facebook, ele acusa
grupos de articularem um golpe e de promoverem um processo ilegítimo. A partir
daí, só nos resta perguntar: como pode haver golpe, se não houve um só
movimento de pedido de renúncia do reitor feito por quaisquer categorias da
UFSB? Nenhuma pressão para ele colocar seu cargo à disposição? Não houve
paralisações, não houve petições públicas, não houve publicação de vídeos, não
houve textos; nada, absolutamente nada que sequer insinuasse um movimento
coletivo de destituição do reitor. Assim, tal afirmação de golpe ofende a nossa
inteligência e, sobretudo, nossa autonomia de comunidade acadêmica. Aceitar tal
discurso é aceitar sermos submetidos a violências discursivas de todo tipo. Por
isso, devemos resistir.
Na primeira vez que ouvi o agora ex-reitor da UFSB, ele já
proferia um discurso de intimidação e de acusação, no qual tentava silenciar as
primeiras vozes discordantes de suas práticas. Uma de suas falas emblemáticas
foi: “Não cabe a ideia de autonomia docente no modelo da UFSB”. E aí está toda
a questão: a crença de que o projeto da UFSB é seu e a ele cabem todas
as diretrizes. Já faz quase três anos desde esse primeiro discurso, ocorrido no
campus Jorge Amado, e nada mudou. O personalismo sempre se configurou como a sua
marca, tendo o reitor tomado para si todas as benesses de implantação de um
modelo distinto de outras Universidades, a ponto de apresentá-lo como o mais
revolucionário modelo que o Brasil jamais conheceu.
Não deixa de ser uma bela história, em um país tão
desprovido de utopias. Quem não quer acreditar em uma universidade
revolucionária nos rincões do Brasil? Uma universidade popular cujo objetivo
seja oferecer cursos de qualidade para a população mais à margem das grandes
oportunidades? Quem não quer acreditar em uma universidade em que não seria
preciso escolher de pronto o curso a definir a sua futura profissão? Porém, o
que sonham a maioria dos/as jovens do interior do país? O que deseja a
comunidade acadêmica, que somos nós, e não apenas uma única pessoa? Não nos foi
perguntado. E aí está o grande impasse do projeto personalista.
Foi esta a resposta que nunca foi dada: como lidar com os
sonhos dos que querem, prioritariamente, cursar Medicina ou Direito. Ao
contrário, para incentivar o maior número possível de entradas na Universidade, disseminou-se a crença de que haveria vagas para todos/as. Estávamos, portanto,
diante de um problema administrativo que foi transformado em um problema
político unicamente pelo gesto do reitor.
Pois o que faz o reitor ao se ver diante da obrigação de
prestar contas acerca de seu maior “cabo eleitoral”; o que lhe rendeu
popularidade entre estudantes, políticos e pesquisadores locais e nacionais, que lhe
permitiu dar inúmeras palestras propagando mundo afora que estava criando uma universidade
inovadora? Simplesmente, pediu exoneração, sabendo que deixava um problema
insolúvel para a atual vice-reitora. Pois se há solução para as vagas de medicinas
existentes versus a quantidade de
estudantes que cursaram o 1º ciclo com o intuito de cursar medicina, a gestão
do reitor Naomar foi incapaz de apresentá-la. Em vez disso, preferiu criar,
como em outros momentos de crise, um discurso no qual culpa outros agentes pelo
seu retumbante fracasso.
Devido ao que me ficou claro desde aquele primeiro discurso
de intimidação, jamais pensei que diria isso, mas agora digo: era obrigação
moral do reitor ter ficado neste momento de crise; ter ficado e resolvido os inúmeros
problemas criados pela sua má gestão. Se não teve grandeza para tal, deveria furtar-se
de criar um “circo” de factoides, que certamente não está à altura do projeto
que ajudou a idealizar. Apontei em tantos lugares, sobretudo diante do reitor, inúmeras
práticas que não condiziam com a sua retórica de renovação e desburocratização,
sendo próprias de gestões públicas corrompidas: concentração de poder, distribuição
indiscriminada de cargos a pessoas sem competência, centralização de recursos,
falta de planejamento etc.. Não era a única. O que presenciamos, nos últimos
três anos, foi paralisia, inércia e descaso com nossas reivindicações acerca de questões cruciais da
Universidade. Apesar de sermos submetidos a um modelo arcaico e perverso de
inúmeras reuniões semanais, não se desenvolveu na UFSB nenhum modelo de escuta.
Menos ainda de deliberações a partir dessas escutas.
Basta ver o organograma institucional da UFSB. Na suposta
universidade democrática, em que tudo deveria ser discutido coletivamente, há
um único órgão deliberativo, que é o Conselho Universitário, até há poucos
meses constituído unicamente por membros indicados. Ao contrário de outras universidades, sob a
desculpa de desburocratização, aqui há um esvaziamento de todas as instâncias,
numa concentração de poderes espantosa e desonrosa para uma Universidade
pública. Nos três campi, congregações e colegiados de cursos não são
deliberativos. Todas as decisões precisam ser referendadas pelo Conselho
Universitário, cujo poder é ilimitado, uma vez que não existe nenhum outro
Conselho intermediário. Tirem daí suas conclusões.
Também nessa concentração de poderes, a pró-reitoria de
gestão acadêmica acumula inúmeras competências funcionais a ponto de se tornar
inoperante. É ali que melhor se observa o quanto uma gestão controlada por uma
única pessoa pode ser nefasta. A cada mínima discordância, pró-reitores foram
sendo afastados no decorrer destes três anos até ser nomeado um sem experiência
alguma em gestão pública, mais propício, portanto, a submeter-se a todas as
vontades da reitoria. Desse modo, dali não pôde sair nenhuma decisão que
resolvesse os inúmeros problemas administrativos da UFSB. Agora, o ex-reitor tenta
pôr a culpa na vice-reitoria e na pró-reitoria
de administração pelos problemas, quando todos/as que aqui estamos
sabemos o quanto as suas formas de controle restringiam as ações.
Deveria ter um reitor a magnitude exigida pelo seu cargo.
Deveria resolver os problemas administrativos da universidade, e não se eximir
de tal trabalho, afirmando ser responsável apenas pela concepção das ideias.
Nenhuma concepção de educação se constitui sem ser posta à prova nas práticas
educacionais. Perguntem a qualquer professor sobre tal relação e será fácil
perceber que o contrário não passa de falácias. Ainda e sempre vale o que disse
o velho Marx: “De resto, ideias nada podem realizar. Para a realização das
ideias são necessários homens que ponham em jogo uma força prática”.
Não há, portanto, o que temer quanto ao porvir da
Universidade. O que há de qualidade na UFSB advém das práticas dos professores/as,
técnicos/as e estudantes que trabalham à revelia dos inúmeros desmandos da administração.
Nas avaliações do MEC já ocorridas para reconhecimento dos cursos, está dito
textualmente: é admirável o intenso trabalho de professores diante da
precariedade da universidade: não há bibliotecas, não há laboratórios, não há
salas de aula suficientes, porém funcionam Complexos integrados, Colégios
Universitários, cursos de pós-graduação e um número elevado de projetos de pesquisa e extensão em parcerias com as comunidades.
Então, é possível que a renúncia do ex-reitor inaugure o tempo em que o projeto desta Universidade não corre perigo. Não me
parecia haver porvir até sexta-feira, pois nenhuma universidade deveria estar à
mercê de uma vontade soberana. É agora
que tudo deve começar. Recomeçar. Aqui ninguém quer retirar o que de direito e
de distinto já conseguimos fazer existir. O projeto da UFSB é de todos/as nós.
Não pertence a uma única pessoa. Um rosto que se diz único, origem e fim de
todas as coisas, não pode ser mais do que uma desfiguração da própria ideia de
sujeito.
O momento atual exige de nós um pensamento forte. É a hora e
a vez – para pensar em Guimarães Rosa – de pôr à prova as instâncias críticas
de pensamento que foram fomentadas desde a Formação geral. Não é preciso muito. Basta não nos deixarmos
ser levados por discursos que não resistem a uma leitura atenta. Basta buscar as
incoerências, as fissuras, as brechas, pois está tudo lá a demonstrar a sua
fraqueza. É puxar o fio e veremos que não sobra nada. Onde não há o Outro, onde
não se aceita o contraditório, a diferença, não cabem sujeitos. Então, sejamos
sujeitos! A UFSB é nossa --- com todas as suas contradições e suas lutas por
vir.
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* Painel no campus Sosígenes Costa.