domingo, 24 de dezembro de 2017

minha biblioteca












penso que jamais terei uma biblioteca de encher os olhos. isso ---- no que diz respeito aos móveis. estou condenada a estas estantes feitas quando eu não tinha um tostão no bolso e precisava de todo modo de prateleiras para abrigar os livros que se avolumavam. sempre que imagino estantes até o teto, feitas sob medida, eu lembro em seguida que não sou uma pessoa de posses. nem suficientemente madura para fazer planos a longo prazo --- economizar, pagar a vista depois de meses de organização financeira, me é algo tão estranho que sequer cogito. sim, estantes de quinze anos atrás que abrigam os livros de antes e os de agora, como que por milagre. sempre há um jeito de caber um pouco mais. inclusive, há o jeito de aceitar como abrigo caixotes coloridos de supermercado, acompanhando a tendência do decor-faça-você-mesmo, que é só uma forma de glamourizar a pobreza.

nesse pouco mais, está a minha história. uma vida inteira. como toda pessoa que compra livros --- e já disse isto outras vezes aqui ---, compro mais livros do que dou conta de lê-los. é tanto um espanto como um acalanto a cada vez que mudo de casa e tenho que fazer com que eles caibam nesses espaços. os livros são a materialidade, a prova, dos meus excessos. não há nenhuma época da minha vida que não esteja contaminada pelos livros --- pelo que li e deixei de ler. assim como as razões pelas quais li e as por que não li.

e mesmo sem memória, consigo identificar a história de cada livro. e o que havia ali de promessa. não a história do livro, mas a que está por trás de sua compra. e do seu desejo - realizado ou não - de leitura. continuo agrupando-os por gêneros e nacionalidades, começando pela prosa brasileira e finalizando com a poesia. a razão por que não estão juntas prosa e poesia brasileiras diz muito sobre a leitora que sou::: antes de tudo, uma leitora de romances.  eu sei que há toda esta bobagem de antagonizar a prosa e a poesia, mas não é por essa razão que sou uma leitora de romances::: meu amor pelos romances vem da infância; é aquela menina que tomava emprestado livros de capa grossa da biblioteca da escola que aprendeu a amar histórias grandes. aquela menina ainda existe nessa resistência do amor aos romances, é o que gosto de pensar. não há memória da infância que não seja também contaminada pela leitura. tanto as boas, poucas, como as ruins, muitas, falam do meu amor precoce pelas palavras escritas. o saber ler aos cinco anos. as palavras escritas nas paredes de tijolo. a mãe professora. a ida à escola. a primeira professora. a minha alegria e o sofrimento do meu irmão na mesma escola por anos seguidos. a descoberta da biblioteca. a surra por causa da leitura, ainda criança, de romances de amor  --- tudo é ferro marcado no corpo.

a poesia é, talvez para sempre, um desejo continuamente adiado, embora nunca me falte um estar-junto de alguns poucos poetas.

nesta última mudança, limpei os livros um por um. foram dias e dias de uma conversa imaginária com tudo aquilo que me rodeia. todos os dias sou rodeada pelos livros::: porque eu gosto de trabalhar no meu escritório. é aqui que suporto bem o preenchimento dos formulários. é também aqui que planejo as aulas. e aqui tenho as melhores ideias no enfrentamento da escrita. não existem dias mais felizes do que aqueles em que resolvo escrever algum texto. por conta dessa felicidade, sei que deveria enfrentar, mais uma vez, uma escrita mais longa. já faz dez anos que escrevi o meu mais longo texto, que foi a minha tese. como eu já disse tantas vezes, percebo nesta um sem-fim de buracos, mas lembro, sobretudo, do amor que havia na ponta dos meus dedos enquanto a escrevia. há muito amor e muito adeus em minha tese. sem dúvida, eu deveria experimentar novamente tamanha entrega.

neste ano, enfrentei a leitura porque não havia muito o que fazer. atravessei o luto com a leitura de livros nas longas noites insones. e por isso, nesse ano, aprendi a amar, sobretudo, Javier Marías, José Luis Peixoto e John Berger. nunca se sabe ao certo se é assim mesmo. o que poderia ser feito e o que não se pode fazer porque é além da capacidade. decidir nada dizer sobre a prostração o medo a dor a tristeza a letargia a não ser também pela escrita --- para que não sejam lamúrias, para que sejam o que apenas são. se poderia ser de outro jeito, não sei, porque foi o modo que encontrei. de alguma maneira, poder conversar com o meu irmão - e com a morte do meu irmão - através dessas longas noites.

os livros nos impõem o enfrentamento do sofrimento e também da própria vida. não me surpreende que, por estes dias, eu esteja às voltas com Thomas Bernhard, um autor que meu amigo Alberto me ensinou a amar há muito tempo, mas que eu havia esquecido até que minha amiga Aline me lembrou que esse amor é uma das minhas estranhezas. ainda hoje penso no Alberto quando leio Bernhard. aquela elegância trágica está também nele. é difícil ler Bernhard e depois me religar com o entorno. há muita dor e muita mágoa espraiadas em cada linha. como levantar a cabeça e enfrentar o mundo? é difícil. nas páginas finais de Origem, Bernhard relata como a leitura de Os demônios, de Dostoiévski, deixou-o incapacitado por muito tempo para outras leituras, tamanho o impacto. é também assim que me sinto::: há escritores que estragaram para sempre meus gostos literários, porque me fazem buscar em cada um aquela mesma sensação em uma meia dúzia de escritores que me atormentam.

talvez seja por isso que eu compro livros de escritores que nunca li ---

--- mas eu li a quadrilogia de Elena Ferrante e digo, sem temor, que ela é uma grande narradora. foi por conta do meu desgosto com os brasileiros contemporâneos que desandei a ler, novamente, os estrangeiros. dessa vez, não mais os russos ou os franceses. sim, foi neste ano que perdi o pudor de dizer  o quanto o romance brasileiro contemporâneo que eu leio está tão pouco impregnado de invenção. ainda encontro algo de distinto em alguns escritores, mas não naqueles que havia aprendido a amar. Joca Reiners Terron ainda e continuamente me surpreende. e nenhum outro nome me vem à mente. parece-me que os outros estão sentados acomodados em suas vitrines mercadológicas --- e são os que ganham os prêmios. para meu espanto e meu desgosto.

porque há isso em toda biblioteca. os grandes amores. as paixões passageiras. os planos de estudo. as decepções. os livros que serão relidos mais de uma vez. os que jamais serão lidos. os que não deveriam ter sido comprados. os que deveriam mesmo que não sejam lidos. os que serão lidos ainda este ano. os que estão numa lista extensa de leitura. os que foram lidos há muito tempo e é como se tivessem sido ontem. os que foram lidos e não resta uma linha, mas que ficaram para sempre cravados em mim. os livros que aterrorizam porque foram lidos. os que atormentam porque não foram. 

e o inclassificável. o imponderável. o que não tem fim. o que é uma herança.
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...
.
existem os livros. 


** para Aline, que me pediu. com amor. para que eu não esqueça. e ela saiba.